Esse não é um texto baseado naquilo que eu vivi. É baseado nos sonhos que tenho, no que me contam, no que os outros viveram e no que ela deixou perpetuado aqui para além das placas da Rua Professora Marlinda Eloy.
Há uma escola no meu interior, o Liceu José Furtado de Macêdo, os tradicionais “Liceus do governo”. A rua dessa escola é chamada Rua Professora Marlinda Eloy. Ao ver as placas azuis e brancas da Gerardo Bastos enfeitando toda casa de esquina dessa rua, lembro das placas que eu paro a frente em Fortaleza e fico me perguntando quem havia sido a pessoa daquele nome.
Inclusive, no semestre passado, aprendi que Silva Jatahy esteve ao lado de Dragão do Mar (o glorioso Chico da Matilde!) no episódio de fechamento dos portos cearenses para o embarque e desembarque de navios escravos. E que Rodolfo Teófilo foi um farmacêutico bahiano e – quase – erradicado no Ceará que lutou contra a varíola e inventou a cajuína! Dá pra acreditar?
Na minha infância, andando de bicicleta, lembro que eu não parava, mas olhava rápido, via o nome como um vulto e sorria. Era o nome da minha avó. Eu sempre vi sua foto pelas nossas salas, paredes… E, na medida do meu crescimento, todos os meus familiares e pessoas que a conheceram chegavam perto, me abraçavam e diziam “você é a cara da sua avó Marlinda”.
Essas mesmas pessoas chegavam e até hoje chegam pra me contar tantas coisas sobre ela. E foi assim que eu construí a imagem e jeito da minha vó em mim.
Ela é baixinha, do meu tamanho, na verdade. Tinha os cabelos curtos e usava um óculos fundo de garrafa preto. A voz era nasal. Era muito, muito inteligente. Era professora e adorava o magistério! Não havia um dia que a casa dela não estivesse um brinco, e os filhos idem. Mesmo já tendo alguém pra ajudar em casa, ela mesmo cuidava de muita coisa. E ainda arranjava tempo pra cuidar dos outros: meu avô era prefeito de Jaguaribara e minha vó, mesmo sem cargo oficial e mesmo antes do mandato dele, saía de porta em porta pra perguntar se faltava algo as famílias, principalmente remédios. Fazia um levantamento e arranjava um jeito de garantir pra eles o que faltava.
Me contaram também de um dia que ela chegou com o olho roxo na sala e ficou dizendo que era porque tinha tentado pegar meu tio no colo, tropeçou e caiu. Mas foi pra aula mesmo assim. Sabia que a sala precisava dela, do conteúdo, do sorriso. Toda a cidade sabia o porquê. As senhoras donas de casa ficavam tristes por ela, porque sabiam mas não podiam ajudá-la. Minha tia-avó por parte de mãe era melhor amiga da minha vó, ela me contou que, na época, estava na moda um liquidificador de vidro, minha vó juntou dinheiro e conseguiu comprar um. O liquidificador foi quebrado. Houve também uma época em que quando a família dela estava na cidade, ela precisava sair pela porta dos fundos pra ver a mãe. Uma vez, separou-se do meu avô e, quando reataram, foi a maior festa!
Assistindo “A Vida Invisível”, de Karim Ainouz, lembrei de minha avó. As sementes que minha avó deixou vão muito além do seu cuidado com a limpeza da casa ou com as roupas dos filhos, vão até sua força, sua resiliência, os tantos ensinamentos que deixou pros alunos e a força que perpetuou para as mulheres da cidade.
Minha avó faleceu um dia após o parto do meu pai, em 1972, quando estava quase completando seus 26 anos. A gente nunca soube do quê. Talvez, embolia pulmonar… mas minhas duas avós tortas contam que, quando a enfermeira foi oferecer um copo de suco pra ela e ajudá-la a levantar, ela já levantou desfalecendo. Meu avô já estava indo buscá-la no hospital da cidade vizinha quando ligaram para um dos únicos telefones que haviam na cidade avisando.
Hoje, já passados 48 anos, eu queria conversar com ela. Queria ver se me pareço mesmo com ela pessoalmente, não por foto. Queria realmente saber se ela e minha tia, que se foi no meu aniversário em 2017, estão juntas agora. Inclusive, dizem que minha tia era a cara dela! A cara, o tamanho e a mesma voz nasal também.
Queria também que todo mundo soubesse quem é a mulher que nomeia a rua do Liceu do meu interior, onde tantos aprendem, tantos ensinam, tantos já cresceram. Mesmo após 48 anos, sinto seu cuidado por nós e por já saber de tanta coisa, me sinto amiga íntima dela junto com minha tia-avó. Queria dar um chega pra lá nessa invisibilidade que afoba tantas mulheres fortes e invencíveis.