Fortaleza, CE
contato@muraldaanapaula.com.br

O tempo do coração

“A infância é o chão sobre o qual caminharemos o resto de
nossos dias” – constata a escritora Lya Luft em seu livro Perdas e Ganhos.

Acredito nisso. Sou prova disso.

Fui uma criança que teve o privilégio de conviver com todos os avós: paternos e maternos- os da cidade e os da Serra.

E é sobre eles que venho falar. Acho até que necessito contar a quem me conhece e se importa comigo o que eles representam na minha história.

Por estes dias, minha memória afetiva anda bem ativada. Tudo que acontece me remete ao vivido num tempo distante que é tão presente em mim. A impressão que tenho é a de que estou a conversar com eles a toda hora, principalmente, com elas: minhas avós.

Nessas conversas que se dão em sonhos, pensamento, em voz alta e por meio de muitos sinais, invoco seus ensinamentos, compartilho emoções, encontro abrigo e alento e agradeço, sempre, por terem me proporcionado a melhor infância que eu poderia ter.

Minha avó Maria Stela queria ser atriz e foi impedida por normas e convenções da época. Mágoa que ela bradou, durante toda a vida, pra quem quisesse ouvir. Alguns a criticavam e diziam que ela gostava de “desenterrar defuntos”. A esses, do seu jeito, ela dizia: “estou viva e essa dor é minha. Faço dela o que bem quiser.” Resistente e rebelde por natureza, fez da própria vida palco e lidou com os aplausos e vaias como verdadeira artista que era: altiva e pouco interessada na unanimidade. Principalmente, por não acreditar nisso. Ela era polêmica, contraditória, intensa, muito divertida e cheia de força pra ser quem era. Gostava de dia de chuva e tinha saúde frágil, assim como eu. Seu espírito livre, muitas vezes, fez doer seu corpo na tentativa de lidar com o excesso de energia e vontade que abrigava. Sua casa linda e cercada de verde foi cenário para brincadeiras dos netos e para muita reunião de família onde havia espaço para pautas das mais variadas. Foi na grama do seu jardim que minha filha andou pela primeira vez.

Estava no trabalho quando ela me ligou contando o fato com muita emoção. No final da vida da minha avó Maria Stela, o imóvel da Rua Juvenal de Carvalho, 1073, no Bairro de Fátima, ganhou novos habitantes – os órgãos públicos que se revezaram como locatários conseguiram destruir, desfigurar a casa da minha avó. Moro muito perto do lugar e, há muitos anos, faço qualquer caminho para não ter que passar por lá. Não quero olhar o que dela restou – um terreno murado com uma carcaça de concreto dentro. Sem poder para mudar essa realidade, guardei o número da casa – 1073 – no peito e, toda vez que ele aparece, reverencio tudo a que ele me remete e celebro mais um dos nossos encontros fruto do mistério.

Minha avó Albertina, a da Serra, foi a pessoa mais cheia de fé que conheci. Eu e minha irmã Ana Patrícia passamos, praticamente, todas as nossas férias com ela. Bonecas de pano, casinha de palha, panelinha de barro e tantas outras coisas eram criadas por ela para que pudéssemos desfrutar ao máximo daquele universo encantado. À noite, antes da reza do terço, ela nos contava histórias que se estendiam em muitos capítulos, por muitos dias. Quando fiquei um pouquinho mais velha, ela me incubiu da tarefa de conduzir o terço dos primos. Missão que recebi e abracei com muita responsabilidade.
Poucos anos antes de sua partida, na casa do meu tio Sávio, ela me disse:

– Dos meus netos, você era quem mais gostava de rezar.

E eu gostava, mesmo.

No quarto de minha avó Albertina tinha um santuário diante do qual, muitas vezes, eu a observava de joelhos conversando com Deus. Nas paredes de sua casa, muitos quadros de santos e fotos. Tudo o que lhe presenteavam passava a ser parte da casa. Calçando a porta da sala de jantar, até hoje, uma enorme pedra redonda e lisa, retirada das águas do rio Jaguaribe, presente de casamento de um primo de meu avô. Às terças e quintas, minha avó reunia as mulheres da região, no alpendre, para ensinar bordado e crochê. Aparecia por lá, ensaiava alguns feitos e ficava a admirar as coisas lindas que nasciam por aquelas mãos. Com muito amor e habilidade, vovó Albertina nos acolhia e nos integrava à rotina da casa. Fazer nossa cama, respeitar o horário das refeições, tomar banho na cacimba de água gelada, hora de brincar- e a gente brincava muito – e hora de dormir.

Vovó Albertina recebia muita gente importante como Dom Aluísio Lorscheider – o cardeal – e Manel Terto – um trabalhador rural, por exemplo . Quem que sabia o que era a “ Cana Brava” – nome do sítio – não desperdiçava a chance de visitá-la. Havia sempre um lugar à mesa para quem por ali passasse. Minha avó Albertina estava sempre apresentável em sua simplicidade. Cabelo bem cortado, vestido de botões, sapato fechado, a medalha milagrosa de prata no peito. Sua autoridade era inquestionável. Aprendi com ela que o respeito é condição primeira em qualquer relacionamento. Sem grito ou ameaça, mas com sabedoria e firmeza, ela conseguia dar conta das demandas domésticas e dos netos. Ela era incrível.

No domingo à tarde, preparava os filhos dos moradores para a primeira comunhão.

Debaixo do pé de seriguela, ela narrava a vida de um Jesus tão amoroso que despertava na meninada o desejo de conhecê-lo. Nós, os netos, participávamos de mais uma atividade coordenada por ela, maravilhados com sua inventividade e capacidade de realização. Quando o Natal chegava, havia distribuição de presentes para as crianças da catequese. Tia Sílvia sempre enviava um saco de bonecas e outros dois de bolas e carrinhos. Eu e minhas irmãs torcíamos para que sobrasse pra gente alguma daquelas bonecas de plástico. A nossa alegria quando isso acontecia era imensa. Nenhum presente que já tivéssemos ganhado carregava a magia e o valor daquelas bonecas que eram iguaizinhas as das meninas do catecismo da vovó e que, exatamente, por isso eram tão especiais.

Outro dia, em visita ao centro da cidade, passando pela Rua Castro e Silva, encontrei uma loja cheinha delas. Não resisti. Comprei um fardo para conseguir, novamente, ter uma. Doei o restante.

Diante de mim, a memória materializada de um tempo que me constitui. O poder de olhar o passado e comprovar a sua força no presente. A possibilidade de reverenciar o legado de amor que me foi ofertado.

2 comentários

  1. Liane Mendonça disse:

    O seu relato conseguiu me remeter às minhas lembranças com meus avós, amiga. Como carregamos o muito deles em nossa existência! Gratidão!

  2. Ana disse:

    Elas continuam ao seu lado

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *