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NOITE SÓBRIA

A boêmia sempre ecoa como canção aos ouvidos daqueles que amam a vida noturna. Alguns a encaram como mera forma de entretenimento, mas a grande maioria busca mesmo é externar nela seus sentimentos mais profundos, suas amarguras que por muitas vezes não conseguem gritar quando existe a luz do dia. Ser boêmio é carregar uma certa dose de tristeza, nada muito torturante ou mortal, mas uma melancolia lírica que permite o surgimento da poesia.

Hoje é sexta-feira, e o poeta já afirmou que este é o dia dos bares estarem cheios de almas vazias. Eu me junto a esses espíritos vagantes numa madrugada sem estrelas. Aliás, meu cenário precisa ser dito: um botequim de balcão perdido em uma dessas esquinas do Brasil que estão sempre dispostas a cruzar avenidas ou corações.

Amanhã é sábado e aqui estou eu, sentado em uma cadeira de caixote na mais completa sobriedade. Só há algo mais depreciativo do que um “boêmio bêbado”, é um “boêmio sóbrio”, pois me embriago em um copo quente de água com gás e, ao oposto dos clientes etílicos, bebo rápido te procurando e no fundo do copo só encontro minha solidão.

Há vantagens de vagar pelas noites na sobriedade, seu olhar fica mais atento e sai passeando nas mesas sem deixar rastro. Observo as cores que me digladiam em volta, assim como as risadas e vozes altas que clamam no pequeno espaço. Batidas de copo, assobios, arrastar de cadeiras.

A meio metro de mim sentou-se um homem que não faz nem meia hora. Chegou acompanhado de uma moça bem mais nova, que obviamente nem é sua filha ou tão pouco sua neta. Ele tem um jeito de funcionário público, daqueles que nunca chegam em casa depois das vinte horas. A dedução não é só pelo crachá e sim pela facilidade no qual a tal dona o tira dinheiro da sua carteira.

Cada qual com sua dor e para supri-la os vícios se tornam uma possível alternativa, talvez não a mais fácil, mas com toda certeza a cômoda. É nesse sentido que encontro no outro lado do bar um senhorzinho de boina. Deve ter sessenta e poucos no registro e oitenta na aparência dos que bebem em busca de paz.

Quando eu cheguei, ele já se encontrava muito bem acomodado, encostado no balcão que mais parecia a janela de sua casa. Chamava o garçom pelo nome, que por sua vez o olhava com cara emburrada. Ali parecia seu habitat natural, onde só se tornará protagonista quando não aceitar a hora da saideira. Ele conversa sozinho, talvez assim se sinta mais bem acompanhado.

Como já relatei, a vida noturna carrega certa nostalgia, nada pesado, mas sempre algo muito sofrido. No fundo da saleta, o que já é de praxe, um cantor de calças alternativas, cabelos longos, óculos redondos e um violão de cordas de aço. Certo momento da noite, depois de cantar todo repertório que vai de “Ronda” à “Na rua, na chuva e na fazenda”, ele puxa o agudo e começa a tocar aquela do Vander Lee que clama para Deus lhe ouvir.

O tom da música já é de rasgar o coração, principalmente de uma moça, sentada na coxia da calçada chorando por algo. Ou seria alguém? Sei que outra amiga lhe abraça, mas seu soluço constante não permite respirar um ar de superação. Ela derrama lágrimas quentes, assim como a neblina começando agora no sereno da madrugada.

Medo de chuva? Que nada! Para um peito afogado, as gotas da noite nem intimidam ou tão pouco assustam. Como já disse um poeta cearense, “quando estou sob as luzes, não tenho medo de nada” e sigo assim, calado, bebendo minha água gasosa e agora um pastel de carne, que por feliz surpresa, veio com uma azeitona. Eita sorte!

A noite segue sem prenúncio de fim. Já nem sei quantas horas que batem no relógio. A escuridão das ruas compactua com a cor no ar que cerca meu coração. Tento esquecer que meu olhar, ao tentar adentrar em outras vidas, deseja esquecer na verdade o que me trouxe para esse botequim.

Nem o funcionário público e sua amante, o bêbado que agora cochila no balcão ou a moça chorosa no meio fio podem consolar a minha dor. A cadeira vazia que parece me olhar poderia ser a tua, as estrelas que agora começam a atravessar as nuvens eu podia te oferecer e a noite fria poderia receber o calor de nossos braços ao se entrelaçar feito poesia.

Tua ausência é tormenta em meus pensamentos e na insônia que já não me deixa dormir com os meus lamentos mais contidos na amarga dureza. Me refugio na boêmia, que na sobriedade me faz olhar um casal que se despede na penumbra da janela do segundo andar do edifício ali da frente.

Os lábios se encontram na maciez que só a paixão permite. Ela, o abraça e os dois se entregam até o momento quando suas almas anunciam um ato de amor eterno onde dois corpos se resumem a um. Talvez, aquela linda cena seja a mais dura, pois dela seriam meus mais felizes sonhos, mas tu não permites acontecer. Uma lágrima escorre. O dia amanhece…Fecha a conta!

Por Heitor de Almeida

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