Minha filha Maria Luiza,
Hoje te escrevo para guardares não só o amor presente nestas linhas, mas como prova cabível, visando que me cobres como pai na execução do que lhe for por mim prometido caso eu possa derrapar no caminho. Nem tudo será possível, pois quando saímos da teoria para a prática, outros caminhos devem ser tomados, mas jamais adentrarei nos que seguem o autoritarismo e a incompreensão egoísta.
Resolvi te escrever pois hoje, deitado no divã, senti uma enorme culpa, o peso de dizer várias vezes a falta de desejo de ser pai. Durante anos, a ideia da paternidade me causava um pavor enorme, mas só agora compreendo os motivos para tal ojeriza. Tive pais maravilhosos dentro das limitações deles, mas o contraste das gerações e a falta de compreensão dos seus próprios traumas resultaram em uma criança infeliz que fui, repleta de medos, carências e vazios.
Ainda que diga tudo isso, preciso também me contradizer ao falar de um ser alegre, guardando em sua inocência, uma certa satisfação com o que tinha. Vivi uma adolescência de poucos sonhos individuais e meu pensamento terminará a ser mais no coletivo. Era isso: queria fugir justamente da falta de abraços e colos que não tive. Nas quedas, a ordem era de levantar, sem direito aquela massagem que não tem serventia física, mas é um consolo enorme para a criança chorando.
Quando resolvi fazer análise enfrentei o primeiro dos meus pavores: abrir a caixa de pandora existente dentro de mim e por tantas vezes silenciada para não contrariar ninguém. Durante quase dois anos de sessões me revoltei tanto comigo, minha filha. Você não imagina a dor que este seu pai sentiu a cada descoberta, em cada arrependimento e ao visualizar o tempo e sua corrida eterna.
Foi assim que entendi que mesmo enaltecendo a força de meus pais para minha formação, eu não queria gerar uma nova vida por medo de repetir os mesmos erros. Ah, lhe peço perdão por todos equívocos da função, mas espero que sejam diferentes dos que sofri. Quero te abraçar, pegar no colo, te fazer vergonha na adolescência quando te sufocar de beijos na frente dos amigos.
Provavelmente essa carta nunca seja enviada, talvez você nem se quer exista e eu passe o transcorrer da vida solitário, sem a dádiva de fecundar um mundo para o futuro melhor, ainda assim te escrevo para dizer que mesmo não vivendo ainda nem no ventre, já te amo de uma dimensão que nem sei explicar.
Outra coisa, te chamo de Maria Luiza por alguns motivos. O primeiro deles é que sempre achei as meninas mais ligadas ao pai e receber o teu carinho vai ser um grande afago ao meu coração, mas não importa se vieres João, Pedro, Heitor, Júlia ou Francisca, receberás minha dedicação e respeito no que for.
O segundo motivo do teu nome, tem muita ligação com o anterior, gostaria de homenagear a Mãe de Cristo e a música do Tom Jobim na junção dos dois nomes, ao mesmo tempo que te falo, que essa é a minha vontade, mas se quiseres ser de outro crédulo ou até nenhum, segue tudo bem, e se decidires gostar de funk ao invés de Bossa Nova, vou buscar estudar o estilo para te entender mais.
No mundo que vivemos hoje é difícil colocar filhos no mundo, mas quero te criar com um amor infinito, quase que utópico pois só assim um futuro novo vai ser feito e uma série de cadeias quebradas. Ainda falando do sentimento, tem uma música de dois gênios do nosso cancioneiro popular que afirma: “Qualquer maneira de amor vale à pena”. Goste de quem quiser, se envolva e se apaixone por quem for, a vida só existe uma vez e o que importa é ser feliz e reforço meu compromisso de te apoiar nas tuas decisões.
Muitas das linhas que comecei digitando foram para mim, mas acreditas que por um segundo fechei os olhos e continuei a carta te sentindo ninar, depois brincando de escorregador e mais tarde rindo da sua primeira tatuagem. Ah, minha filha, não sei se tu virás, mas se vier, venha para a liberdade de ser e nascer você, com tua personalidade e sem a ambição de propagar um suposto legado de seu pai.
Com muito amor, Heitor de Almeida