Minha prima Lúcia se foi. Morreu em uma quarta-feira de cinzas nublada enquanto seu companheiro fazia o café na cozinha. Ataque cardíaco. Partiu de forma discreta como sempre levou a vida, em uma hora que a cidade ainda vivia a ressaca do último dia de festa do retorno do carnaval.
Eu fui acionado às sete horas da manhã para ir até sua casa ajudar a resolver as burocracia. Não vou mentir, pensei: descansou. Lucinha, como costumávamos chamar, passou seus últimos anos não sendo ela. Vinha enfrentando uma esquizofrenia severa, com síndromes de perseguições. Mesmo quando a doença estabilizou, outros problemas de saúde vieram e a morte nesses casos mais parecem um alívio diante um sofrimento perene.
Chegando na casa dela, lembrei que apesar de ter um companheiro, que nessa altura da vida já era mais um amigo, tinha outra família, inclusive, mas sempre lhe prestando assistência e carinho, Lúcia morreu como viveu, sozinha. Sua partida não foi motivo de lágrimas, mas vista mais como um problema para os seus primos de primeiro grau que não conseguiram acionar o necrotério para pegar o corpo de prontidão.
Durante algum tempo, fiquei olhando aquele corpo no canto do quarto. Levantei o lençol para ver seu rosto e ali mais uma vez vi a face da morte na palidez das bochechas e lábios e as mãos já frias. Pensei que a solidão havia acompanhado aquela mulher em suas últimas décadas e pensei: se eu morrer assim, sozinho e ficar inerte no chão esperando que me achem? Estranho, não é? Mas me identifiquei com minha prima que estava fazendo ali a passagem inevitável.
Quando o rabecão chegou para levá-la e fazer a tal necropsia, os dois brutamontes da funerária levantaram pelos seus pés e mãos e despindo aquele corpo de qualquer pudor ou respeito, lhe jogaram em uma gaveta de ferro fria. Ainda tentei ajeitar sua roupa, mas não deu tempo, também ainda não consegui esquecer aquela cena que posso deglutir.
Lúcia se foi quase como o Alfredo do Vinícius, sem ninguém lhe dar muita atenção. Seu sepultamento mal reuniu uma dezena de pessoas. Minha prima e eu fiquei com certo peso de encarar a vida e o futuro, do medo da solidão, da peste, da falta de sonhos e olhares lúcidos. Ando enlouquecido e a dor sempre me vem como reflexão invocando o poetinha novamente para dizer que “para isso fomos feitos, inclusive ver a face da morte”.
Heitor de Almeida