Com direção de Anselmo Duarte e roteiro adaptado da peça de Dias Gomes, a saga trágica de Zé do Burro levou, nada mais nada menos que, a Palma de Ouro no Festival de Cannes
Depois de andar sete léguas com uma enorme cruz de madeira nas costas, o humilde Zé do Burro (Leonardo Villar) chega as escadarias da Igreja de Santa Bárbara, na capital baiana, Salvador. Acompanhado pela esposa Rosa (Glória Menezes), o exausto sertanejo quer apenas cumprir a promessa que havia feito, após seu burrinho Nicolau ter sido curado: depositar sobre o altar santo a pesada cruz em agradecimento a Santa Bárbara. Após tantos quilômetros percorridos – numa jornada a lá Jesus Cristo – cruzar os umbrais do templo católico não deveria ser difícil, não fosse a negativa que recebeu do padre (Dionísio Azevedo), quando este descobriu onde Zé havia feito a tal promessa: num terreiro de candomblé. De devoto, o protagonista passa a ser tratado como herege na visão do sacerdote, pois para o padre, Iansã e Santa Bárbara não poderiam ser a mesma divindade. E afinal de contas: quem era Zé do Burro para querer pagar de Cristo com cruz nas costas?
A partir daí, o longa de Anselmo Duarte se desdobra em uma trama capaz de abordar não somente a autoridade (ou abuso desta?) da Igreja Católica ou mesmo a intolerância religiosa do nosso sincrético Brasil, como também outras questões sociais. O filme é um produto do país em plenos anos 60, contudo, seus temas permanecem atuais 60 anos depois do seu lançamento. O leque de críticas disparadas pela película em preto e branco, perpassa ainda a espetacularização provocada pela mídia em torno do caso de Zé do Burro (é sensacionalismo que chama?), o envolvimento da polícia e a suposta subversão de Zé, que passa a representar uma espécie de resistência a essa instituição. E claro, fala também dos preconceitos sofridos pelo ingênuo herói baiano, que é ridicularizado e humilhado, enquanto a malandragem e esperteza local tentam tirar proveito não só dele, como de Rosa, sua esposa. O ápice da narrativa não poderia ser mais trágico: De pagador de promessas, a acusado de heresia, de acusado de heresia, a messias brasileiro. Zé do Burro alcança a redenção, sem nem ao menos ter procurado por ela.
A odisseia contudo, antes de ser apresentada nas grandes salas de cinema mundo afora, foi contada primeiro em forma de peça de teatro, pelo texto de Dias Gomes. O cinema brasileiro do início de 1960 assistia o nascer do tal Cinema Novo, enquanto Anselmo Duarte assistia a tal peça com a história de Zé do Burro. Encantado com o que tinha visto, Duarte, que não tinha tanta experiência assim com direção, mas que era um ator daqueles mais em estilo “galã”, teve que convencer Dias Gomes a ceder sua obra para adaptação. O Pagador de Promessas vai para frente então, a partir de outra promessa: Duarte prometeu ao dramaturgo que venceria a Palma de Ouro com o filme que faria a partir de seu texto. Anselmo Duarte – o cumpridor de promessas, visto que de fato, o longa foi premiado com a maior honraria do festival francês de cinema.
Já em território nacional, mesmo que o país estivesse experienciando os primórdios do Cinema Novo, isso não significa dizer que O Pagador de Promessas fez parte deste movimento, que só veio deslanchar, de acordo com estudiosos do assunto, em 1963, com o filme Vidas Secas. Pelo que andei lendo, foi o oposto, havendo até um certo embate entre os realizadores que faziam parte desta leva borbulhante de cineastas com o sucesso que O Pagador de Promessas havia atingido. Glauber Rocha que o diga. Reza a lenda, ou melhor, de acordo com livro “Adeus cinema, vida e obra de Anselmo Duarte” (de Oséas Singh Júnior, editora Massao), o próprio diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol, falou para Duarte: “o pessoal do Rio ainda não entendeu como foi possível você vencer em Cannes, derrotar o mestre Buñel.” Bem, de fato, Anselmo não venceu somente Luis Buñel, mas também Agnes Varda e Federico Fellini, por exemplo. Por outro lado, Anselmo Duarte também chegou a alfinetar a estética dos cinemanovistas, que na verdade, usavam de sua técnica revolucionária para documentar e criticar a realidade, se opondo as produções cinematográficas que reinavam no Brasil à época, dentre elas, O Pagador de Promessas, ao que parece.
Com críticas, ou sem críticas, parte do Cinema Novo ou não, O Pagador de Promessas acabou sendo reconhecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, durante a 35ª edição do Oscar. O ano era 1963, quando o longa brasileiro foi o primeiro filme da América do Sul a ser indicado a Melhor Filme Internacional e o primeiro do Brasil a concorrer a esta estatueta. Convidado a participar da cerimônia, o diretor Anselmo Duarte recusou, pois não gostou da mudança no título do filme que virou “The Given Word”, em terras de Tio Sam. Mas francamente, não perdeu nada não comparecendo a premiação da Academia, afinal de contas, a história de Zé do Burro, acabou não tendo a mesma sorte que em Cannes, e o prêmio foi para o filme Sempre aos Domingos, do cineasta francês Serge Bourguignon. Depois de O Pagador de Promessas, somente três outras produções brasileiras voltaram a concorrer a esta categoria: O Quatrilho (1996), de Fábio Barreto (1957-2019); O Que É Isso, Companheiro? (1998), de Bruno Barreto; e Central do Brasil (1999), de Walter Salles.
A questão agora é: se você ainda não assistiu a este clássico (e ainda por cima, aniversariante do mês, pois teve lançamento internacional em 17 de abril de 1962), espero que depois de ficar sabendo de todos esses detalhes, você procure pela história do nosso herói Zé do Burro, pelos YouTubes da vida (o filme está disponível por lá). Depois de assistir, provavelmente você vai concordar comigo em afirmar que mais vale uma Palma de Ouro ganha, do que um Oscar perdido.
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