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Recuso a liquidez


foto: arquivo pessoal/Aíla Sampaio

 

Termino de ler Amor líquido, do sociólogo polonês Zigmunt Bauman, de quem já havia lido Modernidade líquida, e uma lágrima vadia escorrega dos meus olhos. É que toda fragilidade me comove. Sempre fui intensa e verdadeira nos sentimentos, e vê-los, de repente, feitos laços frouxos, que se desatam à toa, me deu uma imensa tristeza. Ter como estranha uma pessoa com que já se teve muita intimidade é muito doloroso.

Nasci numa época em que se comprava nas bodegas e tudo era anotado num caderninho. A garantia era a palavra. Amizade era uma relação séria, atávica até. Hoje tudo se dissolve num piscar de olhos, por motivos quase sempre banais (ou contornáveis com o diálogo e a compreensão mútua). Ficou machucada essa flor – a amizade – exposta aos espinhos da vaidade, do egoísmo, da incompreensão.

Viver num mundo líquido, quando não se sabe nadar, é dilacerante. Ninguém, ou quase ninguém, escapa do risco de escorrer entre os dedos dos outros, pois estamos todos globalizados na fluidez. Aprendemos, inclusive, a viver de modo estranho, protegidos por relacionamentos a distância. Não gostamos mais tanto de sair nem de receber visitas em casa… Dá trabalho!

O que determina essa resistência ao contato físico com o outro? Bauman diz: “seria tolo e irresponsável culpar as engenhocas eletrônicas pelo lento, mas constante recuo da proximidade contínua, pessoal, direta, face a face, multifacetada e multiuso”. Fugimos, na verdade, dos nós apertados, temos medo de nos mostrar em nossas fragilidades, preferimos nos esconder atrás da imagem que criamos.

Sou real, talvez por isso não aceite conviver com a ideia de que somos ‘descartáveis’ como um objeto qualquer. Impressiona-me como as pessoas, com facilidade, perdem o espaço que ocupam na vida do outro, como abrem mão tão simplesmente do que cativaram (não leram certamente “O pequeno príncipe”)! Recuso-me à liquidez, sobretudo recuso-me a aceitar perder as pessoas que, em algum momento da minha vida, foram importantes e, por uma circunstância qualquer, deixaram de ser (ou tiveram que deixar de ser). Não as elimino da minha vida como se extirpa um tumor, sem antes tê-lo diagnosticado como maligno. Não tenho a frieza dos sórdidos.

De acordo com as circunstâncias, seguro a impulsividade (benesse da maturidade), reorganizo as posições que as pessoas ocupam na minha vida, inverto as prioridades e fico esperando o mundo dar voltas. Calada. Quieta. Certa de que a vida deve ser reinventada todos os dias, mas o essencial deve permanecer intacto: o amor e a consideração aos sentimentos dos outros, independente do que tenha havido, pois, nesse, às vezes, injusto jogo da vida, nós, os delicados e aparentemente normais, sabemos quem é quem. Eu ainda acredito no ser humano, ainda acredito que nem tudo o que é sólido se desmancha facilmente no ar… Não sei nadar. Definitivamente, recuso a vida líquida!

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