Lutei toda a minha vida contra a tendência ao devaneio, sempre sem jamais deixar que ele me levasse até as últimas águas. Mas o esforço de nadar contra a doce corrente tira parte de minha força vital. E, se lutando contra o devaneio, ganho no domínio da ação, perco interiormente uma coisa muito suave de se ser e que nada substitui. Mas um dia hei de ir, sem me importar para onde o ir me levará.
(Clarice Lispector)
Ipu, abril de 2021. Há mais de um ano nessa situação catastrófica de Brasil&pandemia, a reclusão e o isolamento me fizeram reparar na quantidade de emoções que me atravessam durante um único dia, diante do número de faces que possuo não me assusto: me interesso por todas, observo tudo. Meu humor está algo que nem queira ver, é uma roleta russa, agora falando de estados de espírito, sobrevivo nesses tempos com praticamente dois: um simplesmente não me suporta mais, pergunto silenciosamente e por obséquio se alguém quer trocar de cabeça comigo, não aguento mais esse cérebro, pensa demais toda hora, pergunta demais toda hora, supõe demais toda hora, fala besteira, se preocupa, problematiza, dificulta o que é simples, minha mente funciona de um jeito que, olha, me esgota.
Fazer alguma atividade física pelo menos. Estudar. Ler um livro. Meditar, é claro. Treinar a sequência pra ficar melhor no corpo. Escrever a crônica. Fazer a receita que o David pediu. Escrever pra Tainá. Escrever para todos que sinto saudade. Videochamada. Videoaula. Videorreunião. Videocomemoração. Baixei o aplicativo Espacate em 30 Dias. Plano alimentar novo. Aquecimento vocal. Alongamento.Yoga. Autocuidado. Ouvir aquele podcast. Comprar a ração dos gatos. Regar as plantas. E se um dia tiver uma criança aqui? Nam. Fazer a avaliação final. Retorno da consulta. Videorretorno. Rezar. Não julgar. Ouvir música. Dançar, pelo amor de Deus, dançar. Cronogramas. Prazos. Metas. Vivências. Curso livre. Aula grátis. Bolsonaro genocida. Terapia. Fazer um chá. Não ver as redes sociais hoje. Correr com o Igor. Anotar os sonhos. Mudar ou não mudar? Listas. Planos. Sonhar, tem que sonhar. Projetos. Crise de ansiedade? Violão. Teatro. Espanhol. Bordado.
“Valha, mulher, pra quê isso?”
Lá vou eu pela milésima vez me dizer “calma, olha a vida acontecendo aqui, o dia não é bom apenas se a lista de tarefas for preenchida, a vida é o percurso, se lembra? Deixa fluir, se entrega, faz o que dá, ninguém tá bem, são tempos estranhos, se perdoa, respira, não tem ninguém com raiva porque você não responde nunca, e se tiver, que se vá… Você não está no controle, lembra? Eu tô aqui contigo, eu fecho contigo, nós entregamos pra Deus, a vida é boa apesar de. Tá tudo certo.”
“Ah, é mesmo. Ô cabeça doida!”
Percebo sua mecânica tão minha conhecida, sua programação tão minha íntima e penso, dessa máquina eu entendo, como entendo… Essa máquina é a que tenho, meu corpo me sustenta, me representa, é sadio, eu o amo. Minha mente e meu espírito tão misteriosos e infinitos enclausurados em 158 centímetros, raciocínio, lógica, tudo em movimento, eu toda em construção o tempo inteiro. Mas existe algo essencialmente meu, eu o reconheço em meio a toda confusão e caos, o algo está sempre lá, fazendo de mim ser eu.
Na caneca que minha avó Arineide me deu tem uma frase: “Insista na felicidade, vale a pena”. Eu sei que recado de vó a gente escuta, mas esse “insista” me pegava mal porque soava como esforço e eu nunca gostei de insistir, gosto do que é fácil, do que vem fácil, do que vem sem imperativo. Agora, depois de encarar muito a frase da caneca, percebo este “insista” como uma decisão ou um trato, talvez. Sempre falo desta caneca porque foi um presente especial e eu amo receber presentes, acho que quem não ama também está mentindo. Presente é amor materializado – ou sentido. Há alguém que não se renove com a sensação de ser amado? Quem interpretou a frase da caneca foi meu segundo estado de espírito – nos dias dele acordo prática, decidida e decreto: Hoje nada vai tirar a minha paz. É um pacto sério.
“Estar em paz não te deixa envergonhada?”
“Não”
“Num momento desses? A felicidade é constrangedora”
“Não, a felicidade não me constrange”
“E as pendências?”
“Hoje não. Hoje preciso de mim. Não importa que dia é hoje, hoje é domingo, hoje é meu dia preferido.”
Encerrado o assunto, a minha alegria escancarada sem culpa escorre… “Isto vai passar”, é o lembrete. Me deleito na alegria. Não sou nada, não sou ninguém, não há absolutamente nada que eu possa controlar ou fazer, sinto a natureza, cantarolo, me perco em delírios infantis olhando as nuvens. Meu Deus, como sou dispersa, abstrata e aérea, rio como bruxa, como é bom descansar no devaneio…
Hoje é minha folga, hoje é domingo, o meu dia favorito. Estou mais repetitiva ainda. Não ligo. Hoje eu me desprendo de tudo, hoje finalmente estou livre de mim.
Meu ar e meu fogo estão sempre em busca de terra e água. Firmeza, pé no chão, se enraiza, me dizem. Flexibilidade, escuta as emoções, se adapta, me dizem. Mas ar e fogo são o que são, eu sou como sou e vem cá, a busca pelo equilíbrio não deve ser um compromisso leve, acolhedor e respeitoso? Precisa fazer sentido. Pois hoje sou o que sou e dane-se. Quando eu era pivete faltava pouco me esfarelar no ar, me desmanchava na ilusão, na imaginação, na criatividade, nas nebulosas, na fumaça, na loucura, eu vôo fácil, que mal tem nisso? Ah, mas hoje eu vou com a maré pra onde a maré me levar, hoje eu sou um raiozinho de luz, um pedacinho de fé, sei nem cadê meu celular, uh, uh, uh, que beleza!
Uma vez me falaram que ter uma cabeça barulhenta é como ter a cabeça da Medusa: uma cabeça cheia de cobras e todas as cobras estão agitadas, inquietas e falando ao mesmo tempo, me falaram que meu trabalho é ir cortando as cabeças das cobras, uma por uma, degolando-as, até que morram todas, até que haja silêncio. Todos os dias tenho que ir podar essas serpentes. Adoro esta comparação pois acho terrivelmente assustadora. Meus medos e meus desejos estão quase se fundindo. Da estante, o boneco vodu da Clarice diz o que eu gostaria de te dizer agora se pudesse te olhar nos olhos “eu sou como você me vê”. Eu sou como você me vê.
Um comentário
Você é fantástica!!