Fortaleza, CE
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Direito à memória e cidades inexistentes

Há 260 quilômetros de Fortaleza, há uma cidade chamada Jaguaribara. É a minha cidade. Não nasci lá, Fortaleza é minha cidade natal, não tem quem diga, mas é. O fato é que Jaguaribara, quem vê, diz que tem ruas largas, paralelepípedo retinho como só o da Europa. Mas quem vê e somente vê, não enxerga toda a história por trás de cada pedra de calçamento, é impossível ver a identidade do dono da casa vendo apenas aquelas casas todas iguais, ruas todas iguais. Dá até um sentimento de civilização e ordem. Só não dá de aconchego pros que ali vivem.

Foi com esses pensamentos inquietantes que eu, Lianne Ceará, estudante de Jornalismo na Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e Francisco Cavalcante, um amigo jaguaribarense, estudante de Direito na Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN) unimos nossas forças e apresentamos o artigo científico “O direito à memória e seu papel na construção do futuro: um estudo de caso sobre Jaguaribara – Ceará” na Universidade Federal do Semiárido (UFERSA), em Mossoró. A pesquisa é fruto de um evento que foi promovido por ele, em Jaguaribara mesmo, em que eu fui mediadora da mesa “+Memória: o papel do passado na construção do futuro de Nova Jaguaribara”.

Mas porque Nova Jaguaribara? Mas porque o direito à memória?

Jaguaribara é uma cidade que foi construída em substituição à antiga sede do município, que ficou submersa após a obra do Açude Castanhão. A luta dos jaguaribarenses contra a construção da faraônica barragem esteve atrelada à resistência popular no âmbito político-institucional, principalmente com participação em reuniões e assembléias com representantes do governo.

Durante o processo de construção, o povo jaguaribarense se recusava a deixar sua terra; nas palavras do governo, a barragem precisava ser construída e o discurso dos moradores era que a cidade precisava ser salva e mantida em pé, em nome da memória coletiva, afetiva e patrimônio histórico e cultural. O governo tinha outras possibilidades de construção da Barragem, como era a sugestão do DNOCS, de fazer 12 pequenas barragens em todo o estado visando até mesmo a democratização da água.

Será que as cidades que não vão pra frente precisam parar e olhar para trás? Será que essas cidades precisam, assim como antes da escrita, depender da memória para gerar novos feitos e também transmiti-los? A memória é um lugar que precisa ser visitado?

Apesar de a mídia governamental atrelar o acontecimento a um caso concluído, o processo de demolição e desterritorialização vivenciado em Jaguaribara trouxe várias consequências jurídicas e sociais, como a violações de direitos básicos de seus moradores. Prejuízos materiais e imateriais que afetam, além do direito à memória, o direito à cidade, à propriedade, ao patrimônio cultural e imaterial do povo e aos aspectos psicossociais dos moradores que foram prejudicados pela mudança e pelas promessas governamentais não cumpridas passados 18 anos.

Desde 2001, Jaguaribara tem uma nova sede. A atuação do Instituto da Memória do Povo Cearense (IMOPEC) na transição de sede foi fundamental na tentativa de manter viva a memória daquele povo, principalmente com a criação da Casa da Memória, uma espécie de ecomuseu feito com artigos doados pela própria população, desde a bicicleta de um garotinho – que foi doada por ele mesmo – até documentos raros sobre a cidade. Atualmente, o local não é muito frequentado e o desinteresse da população é perceptível, não havendo uma equipe de pessoas que divulguem a importância do espaço como garantidor do direito à memória social daquele povo.

Por meio desse estudo, percebemos que as problemáticas da cidade são capazes de gerar possíveis soluções para o futuro da cidade e para que os citadinos sejam capazes de criar um laço de pertencimento – que aos poucos desponta – com o novo local, saber sobre sua identidade cultural, para que se reconheçam enquanto povo e, principalmente, sujeitos de direitos e deveres. Além de, no contexto de Jaguaribara, a memória não ser vista como um elemento que constitui um meio de legitimação do poder e luta social, nem algo a ser revisitado constantemente.

Este trabalho nos rendeu outros frutos e uma parceria de luta. Estamos na produção de uma outra pesquisa, agora mais aprofundada na comunicação comunitária da luta da população durante os 15 anos de resistência do povo jaguaribarense quanto à Barragem Castanhão.

Hoje, a antiga cidade está visível aos nossos olhos pela seca que ainda assola nossa região. Nossa memória agora parece nada mais, nada menos, que um vômito da natureza. Aquelas ruas que um dia deram lugar às brincadeiras de crianças, vai e vem das bicicletas e carroças, hoje são palco de choros, saudades e visitas ligeiras. A memória coletiva não é revisitada, mas se tem uma visita constante, essa visita é à antiga cidade que, mesmo com os escombros, gado pastando e cenário assustador, não impede que seja feita.

Um comentário

  1. Fabiano Costa disse:

    Que artigo maravilhoso. 👏👏👏👏👏. Recentemente pesquisei essa história angustiante porém envolvente. Não sou de Jaguaribara, mais nas minhas orações pesso para que Deus conforte um dia os corações de cada um que tiveram a infelicidade de passar por essa situação horrível.

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