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Killing Eve: uma história de amor

Fria. Calculista. Insensível. Espinhosa. Irascível. Amoral. Sem remorso. Criminosa. Sanguinária; Na contramão da representação de mulheres assassinas adestradas em estereótipos de crimes passionais e de autodefesa, essas são as placas que pavimentam a estrada por onde caminha Villanelle, a anti heroína da série Killing Eve.

Nasceu na Rússia, em 93, com o nome de Oksana Astankova. Ainda na idade da inocência, foi entregue aos cuidados de um orfanato. Mais tarde, foi recrutada por uma organização secreta (os Doze), e treinada por eles para ser uma assassina profissional. A natureza dos assassinatos e a satisfação inebriante em seu rosto deixam claro logo de cara; a psicopatia é inegável. Pintada em cores primárias. Está dado.

O trabalho de Villanelle é versado pela eficiência. Funciona assim: ela recebe as coordenadas, planeja o assassinato, executa, recebe o dinheiro e gasta. E como gasta. A personagem é de um refinamento e comprometimento estético tão notável que seu apurado senso fashion já foi assunto em possivelmente todos os veículos de moda mundo afora. Tem terno Dires Van Noten, vestido Miu Miu, Burberry, Molly Goddard, Balenciaga, Chanel… só para citar algumas grifes.

E este é o rascunho da superfície da sua personalidade: psicopata cruel e fashionista. Mas não só isso: a assassina é também absolutamente carismática. A sedução que ela exerce sobre os telespectadores não respeita nenhuma razoabilidade. Seu jeito irônico, cínico, de humor afiado, meio mórbido, o comportamento impetuoso, excêntrico, exuberante, a sexualidade fluida e despreocupada: nada disso escapa ao apego da audiência.

Ela é perigosamente charmosa e intrigante. E, preste atenção: terrivelmente humana.

“Humana?” Você pode estar pensando, “uma psicopata?” Bom… sim!

Acontece que no correr dos episódios a energia imprevisível de Villanelle ganha contornos melancólicos. Conhecemos seu passado através do reencontro com sua família e descobrimos que sua mãe sempre a rejeitou. Nunca a quis. Villanelle nunca conheceu o amor, sequer o materno. A morte é tudo o que ela conhece e a única geografia que parece abraçar sua plenitude. Ela é uma máquina de matar. E isso é tudo.

Confrontada por essa consciência, Villanelle passa a se sentir desconfortável dentro da própria pele. Ela começa a perceber seu status de assassina como uma espécie de prisão. Ela sofre, se sente mal. E, convenhamos: é preciso ser minimamente bom para reconhecer-se condenável. E aqui entramos numa pertinente questão: a classificação é inescapável à condição humana. É assim que organizamos e elaboramos os arranjos da nossa subjetividade. É a forma como nos percebemos. Mas seriam as classificações inalteráveis à nossa espinha dorsal? Ou seria possível colocá-las sob um olhar de desconfiança e cavar mais fundo as suas nuances?

É precisamente esse movimento que fazemos em relação à Villanelle. Nos aprofundamos. Entendemos seus marcadores característicos e aceitamos o seu desarranjo de relevo vilanesco, sim, mas curiosamente na forma e altura exata do humano. E eis o que acontece: o diagnóstico de psicopata vai perdendo a nitidez.

Mas o que desencadeia essa crise de identidade em Villanelle? O que a faz se colocar em análise? O que origina essa bagunça? Ou melhor: quem? Bem…

  • LOVING EVE

Se Villanelle é, em primeira camada, amoral, alguém precisa fazer oposição no espectro moralista. Se Villanelle é o crime, alguém precisa ser a lei. E quem veste o chapéu da justiça em Killing Eve é, bom; Eve. Eve Polastri, uma agente da inteligência britânica cuja vida está, aparentemente, nos conformes da “normalidade”. Mas Eve está, e logo se mostra, infeliz. Infeliz no emprego, infeliz no casamento heteronormativo, infeliz na sua domesticação social. A imagem higienizada rapidamente se revela em contradição com seu desejo imperativo por ação, por perigo, por poder, por… mais. E é então que a oportunidade de abandonar a mediocridade palatável de suas funções atuais lhe chega às mãos através de uma missão: achar Villanelle.

Eve é complexa e contraditória. É destemida e insegura. Mas é, acima de tudo, obstinada e incansável. E Eve não apenas encontra Villanelle, ela se encontra na assassina. À medida que os rumos se descortinam e as percepções se densificam, fica claro: no espiral de um jogo de gato e rato embebido de tensão sexual e busca obsessiva, a conexão que se estabelece entre Eve e Villanelle é verossímil e intensa. A dinâmica de descobertas e procura mútua é movida por emoções instintivas de ambas as partes. Elas não conseguem se abandonar (e isso dita o ritmo da série).

Eve passa a viver um dilema moral. Villanelle começa a questionar seu senso de identidade. E ambas sente. Muito. É um sentir desconcertante, permeado por sombras incisivas, poderoso, inexplicável. Elas sabem: a fagulha que se acendeu ali tem potencial para devastar suas vidas. E a tensão, a princípio, puramente sexual, passa a evocar uma tensão romântica que escapa ao esforço de cognição racional de ambas. É como um campo eletromagnético que toma de assalto a prudência e a razão. É uma paixão atordoante.

Elas se apaixonam, sim. A assassina e a agente, em um controverso e irresistível enemies-to-lovers. O relacionamento é construído por sutilezas e em gestos significativos que escancaram o aspecto visceral do sentimento. Elas se admiram, se entendem no olhar, e vão tomando consciência da natureza do que sentem. Eve se dá conta de que sua envergadura moral não difere tanto da de Villanelle quanto imaginava. E Villanelle se despe de sua usual energia impenetrável e assume a fragilidade absoluta. É tanta fragilidade que, em alguns momentos, aquilo lhe consome à exaustão e lhe quebra em lágrimas. Ela não é mais quem costumava ser, ainda que exista algum grau de frieza e distância, sua condição humana feroz e intocada não está mais lá. Porque Eve a tocou. Porque Eve existe, e agora ela tem um motivo para desejar um futuro. Um futuro com Eve.

E é aí que o castelo de cartas desmorona. Rompem-se as comportas do peito e a aventura romântica logo veste tons mais sérios. É amor. Um amor que as desarma, que exige vulnerabilidade, que quebra com a dinâmica de posse diante de tal entendimento. Amor. O que se ergue, agora, é um jogo amoroso. E elas estão jogando juntas.

Elas irão vencer? Elas poderiam vencer? Ou há muitas sombras que se abatem sobre o casal? Que destino as espera enquanto elas crescem exponencialmente em direção a união amorosa?

Elas perderam tudo. Abriram mão de tudo. Transformaram bruscamente o eixo da vida uma da outra. Toparam seus defeitos e suas dinâmicas. Se aceitaram e, ao mesmo tempo, tornaram-se outras. Renasceram. Tornaram-se uma. Eve e Villanelle. Villaneve.

 

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