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“Eu sou uma nega preta e crioula”: a poesia de Stela do Patrocínio

Em seu “falatório” – como definiu sua obra poética – Stela do Patrocínio dizia “ser útil, inteligente, ser raciocínio”. Nasceu “com quinhentos milhões e quinhentos mil anos”, com o nome verdadeiro “caixão eterno”. Falava sobre passar fome, sofrer da cabeça e cumprir uma prisão perpétua. Era também “gases puro ar, espaço vazio, tempo”, “macacos, girafas e tartarugas”, “nega preta e crioula”. “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome” — disse.

Stela do Patrocínio veio ao mundo em 9 de janeiro de 1941, filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Xavier do Patrocínio. Com instrução secundária, trabalhava como empregada doméstica na Urca, bairro do Rio de Janeiro, na mesma casa em que sua mãe foi diagnosticada como louca.

Mulher, preta e pobre, Stela foi internada no Centro Psiquiátrico Pedro II no Rio de Janeiro aos 21 anos de idade, num Brasil de 1962, após passagem pela Quarta Delegacia de Polícia. Quatro anos depois, transferida ao lugar que ficara até sua morte. Trinta anos de sua existência foram vividos entre as paredes e os tetos da Colônia Juliano Moreira – onde sua mãe também fora internada. A instituição carioca foi criada na metade do século XX, para destinar, classificar, agrupar e aprisionar os ditos “anormais”, “doentes”, “corrompidos” e “desviantes” da sociedade.

Num ateliê de artes na Colônia, montado pela artista plástica Nelly Gutmacher, Stela respondia algumas perguntas e expressava sua identidade, suas sensações, sentimentos e subjetividades. Nas reuniões de arteterapia, suas falas foram gravadas em duas fitas cassetes de 1986 a 1988, por Gutmacher e o grupo de alunos que a acompanhava. Os áudios foram transcritos. Ao final da experiência artística, algumas de suas frases foram expostas na Mostra “Ares subterrâneos”, no Paço Imperial, que reunia a produção artística dos pacientes da Colônia. Posteriormente, os áudios foram reunidos e organizados pela filósofa, poetisa e psicóloga Viviane Mosé, no livro “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome” (Azougue, 2001), finalista do Prêmio Jabuti.

“Carreguem ela”

Na descrição do momento de sua internação, Stela conta que estava na Rua Voluntários da Pátria com seu amigo Luís; “com um óculos, vestido azul, sapato preto, com uma bolsa branca com um dinheirinho dentro”. Ia pegar um ônibus para comer algo na estação de trens Central do Brasil. Luís foi ao bar, “sentou na cadeira, tocou na mesa, falou com o dono do bar pra aprontar pra ele uma Coca-cola e um pão de sal com salsicha; ele tomou toda a refeição sozinho”.

“Não pagou pra mim, nem eu pedi, nem eu disse nada, nem tomei dele, nem eu pedi a ele pra pagar pra mim, aí ele tomou, quando ele acabou nós saímos, (…) perdi o óculos que estava comigo, um óculos escuro, parecia que ele tinha me dado um bofetão na cara pra mim perder o óculos”, relatou. Stela disse ter sido ajudada por uma senhora. Logo depois, afirma que “uma dona” a colocou “dentro do Posto do Pronto Socorro”, onde recebera injeção, remédios, eletrochoque, banho, refeição, e foi, então, “carregada” para o hospital:

“(…) Ela achou que tinha o direito de me governar na hora, me viu sozinha (…) ‘carreguem ela’, deu ordem, ‘carreguem ela’, na ambulância, ‘carreguem ela’, carregaram, me trouxeram pra cá como indigente, sem família, vim pra cá, estou aqui como indigente, sem ter família nenhuma, morando no hospital, estou aqui como indigente, sem ter ninguém por mim, sem ter família e morando no hospital” 

Linguagens

Com a fala atravessada por questões existenciais, a poesia de Stela é marcada no jogo de palavras, na exploração dos sentidos, sonoridades e da sua própria identidade. Em 1992, a artista foi internada devido à uma grave hiperglicemia. Stela teve sua perna amputada e, de volta à Colônia, entrou em depressão, parou de se alimentar ou conversar. Morreu pouco tempo depois. Sua produção artística foi inspiração de várias peças de teatro, músicas, artigos, dissertações e documentários, como o filme “Stela do patrocínio, a mulher que falava coisas”, dirigido por Márcio de Andrade.

 

 

Na Lista desta semana do Mural da Ana Paula, a poesia de Stela do Patrocínio:

Eu sou Stela do Patrocínio
Bem patrocinada
Estou sentada numa cadeira
Pegada numa mesa preta e crioula
Eu sou uma nega preta e crioula
Que a Ana me disse

Eu sobrevivi do nada, do nada
Eu não existia
Não tinha uma existência
Não tinha uma matéria
Comecei a existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos
Logo de uma vez, já velha
Eu não nasci criança, nasci velha
Depois é que eu virei criança
E agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha

Você está me comendo tanto pelos olhos
que eu já não tenho de onde tirar força
pra te alimentar

No céu
Me disseram que Deus mora no céu
No céu na terra em toda parte
Mas não sei se ele está em mim
Ou se ele não está
Eu sei que estou passando mal de boca
Passando muita fome comendo mal
E passando mal de boca
Me alimentando mal comendo mal
Passando muita fome
Sofrendo da cabeça
Sofrendo como doente mental
E no presídio de mulheres cumprindo a prisão perpétua
Correndo um processo
Sendo processada

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles

Meu nome verdadeiro é caixão enterro
Cemitério defundo cadáver
Esqueleto humano asilo de velhos
Hospital de tudo quanto é doença
Hospício
Mundo dos bichos e dos animais
Os animais: dinossauro camelo onça
Tigre leão dinossauro
Macacos girafas tartarugas
Reino dos bichos e dos animais é o meu nome
Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista
Um verdadeiro jardim zoológico
Quinta da Boa Vista

Se eu pegar a família toda de cabeça pra baixo
E perna pra cima
Meter tudo dentro da lata do lixo e fazer um aborto
Será que acontece alguma coisa comigo?
Vão me fazer alguma coisa?

Se eu pegar durante a noite novamente a família
toda de cabeça pra baixo
E perna pra cima
Jogar lá de dentro pra fora
Lá de cima cá pra baixo
Será que ainda vai continuar acontecendo
alguma coisa comigo?

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente
Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro

Eu sou seguida, acompanhada, imitada, assemelhada
Tomada conta, fiscalizada, examinada, revistada
Tem esses que são iguaizinhos a mim
Tem esses que se vestem e se calçam igual a mim
Mas que são diferentes da diferença entre nós
É tudo bom e nada presta

 

Fontes:

NUNES, M.; MARQUES, T. P (org). Legitimidades da loucura: sofrimento, luta, criatividade e pertença. Salvador: Edufba, 2018.

PATROCÍNIO, S. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Beco Azougue Editorial, 2001.

STELA do Patrocínio: A mulher que falava coisas. Direção: Marcio de Andrade. Roteiro: Marcio de Andrade. Elenco: Stela do Patrocínio, Carla Guagliardi, Julius Teixeira, Pedro Silva. Empresa Produtora: Filmes do Serro. Empresa(s) Co-produtora(s): Cinema Tique, 21 Filmes. Rio de Janeiro, 2007. 1 DVD (14 min e 37 seg.), Colorido/PB.

 

 

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