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Fragmentos da memória

Porque eu não consigo parar de olhar.

Talvez pelo fato dessa foto ser única, a considero uma imagem especial, além de ser a prova que eu preciso para ter a certeza que essa mulher não é fruto dos meus delírios infantis. Olho e penso: você está aqui a gritar minhas lembranças de criança.

Esse olhar penetra na minha alma e traz consigo uma dor que corrói todo meu corpo que me arrasta pelo braço. Me prende numa teia de imagens .Da casa sem conforto, do fogo aceso em meio a chuva que batia no telhado e o vulto da mulher de pequena estatura que andava com certa dificuldade naquele chão de terra batido.

O vestido da foto é igual a todos que me vem à mente, cheio de florzinhas. Parecem fazer parte de todas suas vestes, ou talvez ela não tivesse tantos para trocar. Esse da foto tem a cor que o tempo pintou. Mas o aroma é de saudade misturado com cheiro de vó. A voz chamando meu nome como nunca mais pude ouvir, me falando do mundo e dos temores da cidade grande onde ela nunca pisou.

Me contava dos monstros, dos príncipes e de seus castelos, dos falsos abraços e sempre dizia, “O mundo é um livro aberto que ensina quem não sabe ler”. Eu na minha inocência ria e dizia: mãe eu nunca vou sair de perto de você. Ela me abraçava e ficava em silêncio. Talvez seu coração soubesse do engano da minha percepção e palavras infantis.

Minha mãe me influencia até hoje com seu jeito de ver o mundo. Com ela aprendi que dividir o que você tem é diferente de dar o que tem de sobra. Se chegasse alguém em nossa casa ela dividia o almoço dela e, se fosse preciso, dava todinho e dizia:
– Eu estou em casa eles estão com fome.
Ela chorava com a dor alheia, vivia seus dias cuidando do próximo, não conhecia dinheiro e nunca o recebeu ao prestar um serviço. Dizia que o dinheiro é o maior inimigo do ser humano.

O cabelo branco misturado com loiro, que ela gostava de soltar para que eu brincasse de pentear. Depois, fazia ar de brava, juntava nas mãos e prendia no meio da cabeça, com seu pentinho cor de telha. A memória dialoga, faz companhia e acolhe essa criança que chora de saudade.

Essas lembranças inundaram minha mente de forma assertiva, anunciando que a menina voltou. Está de pé à minha frente, confunde e interroga meu ser, trazendo um amargo na boca e chorar é quase que automático.

Lembro de um fato que até hoje me provoca o choro : um policial havia capturado um delinquente considerado perigoso. Ele parou em nossa casa e trazia o homem amarrado e seguindo seu cavalo a pé. Era hora do almoço, minha mãe pegou comida botou na boca daquele homem e lhe deu água. Não sei quem chorava mais, o homem ou ela. Por um momento eles dialogaram através do misterioso mundo das lágrimas .

A noite chegava arrastando o breu que era rasgado pela chama de luz que vinha do lampião que ela trazia. O medo desaparecia feito mágica e nas cantigas de ninar que exaltavam a lua, a princesa e os gatos, eu queria me transportava para um mundo distante inventado por ela.

Nas mãos calejadas, trazia um terço pelo qual falava com Deus e repassava seus ensinamentos a todos que ali vinham em busca de um olhar, um chá ou, às vezes, só de um abraço. Ela sempre tinha um remédio para qualquer que fosse sua dor.

Percebo só e nesse instante que estou condenada a solidão e a vontade do colo que sempre me guardou. E, ao olhar essa foto amarelada pelo tempo, finco os joelhos no chão e repetidamente me pergunto: por quê ela se foi…

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