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Especial: Eclipse no Sertão


 


Era noite no sertão. O vento uivava sonetos lá fora, as cigarras compunham uma melodia desconexa. No meio da estiagem, um casarão denunciava que ali já havia sido lugar de
inúmeras histórias. Manchas na parede de muitas janelas e a canoa parada ao relento eram as marcas de quando o açude encheu. Uma légua depois do casarão, em um monte mais alto, havia uma outra casa, essa já parecia mais moderna e recém construída. Não era pintada, não tinha muitas janelas, o telhado já não era tão alto. A precaução era motivo da construção dessa casa. Lá, a água do açude não era mais capaz de chegar, como aconteceu uma vez. Lá, aquela casa seria abrigo, sem o perigo de acordarem com água na canela. Ficariam ilhados, mas, que mal havia ficarem isolados do mundo que os resolveu isolar? 

Há uns anos, esse lugar e os outros que o rodeiam, num raio de 10 quilômetros, abrigavam apenas Maria e Zé. No casarão branco, havia um alpendre largo e amplo, com muitos armadores de rede e cadeiras, ele abrigava a família que vinha da cidade em épocas de festa. Naquela noite, Zé já se sentava na cadeira ao lado da porta principal da casa para seu último fumo do dia, ao sentar-se, ele escuta o galo cantar. 

Eita… – Zé se benze na intenção de afastar tudo aquilo que acredita que o cantar do galo fora de hora pode trazer.

O céu estava estrelado, mas nuvens cobriam boa parte dele, inclusive a lua. Enquanto Zé embolava seu cigarro de palha minuciosamente, o cheiro de café se espalhava pela casa. Lá, eles pareciam não se importar com a ideia de que café tira o sono. Maria estava na cozinha lavando a louça do jantar enquanto a radiola transmitia o especial que tocava todas as noites na rádio, só tocavam as melhores dos anos 80! 

Era uma chiadeira danada! Moravam longe da cidade e, consequentemente, longe do sinal. Mas isso não impedia que Maria ouvisse e cantarolasse junto ao rádio uma música propícia para a noite: Luar do Sertão, na voz de Chitãozinho e Xororó.

Zé, lá fora, dava impulso na cadeira de balanço com o pé no batente do alpendre no compasso do tragar de seu cigarro. A fumaça subia, a cadeira ganhava impulso. Zé observava as estrelas sumirem quando o vapor se sobrepunha ao brilho delas. Tudo aquilo durava milésimos de segundos, mas ele observava com atenção. Reparou nas nuvens, que estavam meio avermelhadas, pensou que ainda fossem os rastros deixados pelo pôr do sol de pouco tempo. Elas ainda cobriam a lua, mas era possível ver que onde a lua estava, o vermelho era mais intenso. Zé franziu as sobrancelhas estranhando a cena e entre uma tragada e outra, também acompanhava, com assobios, a canção de Maria. O uivar do vento, o chiar das cigarras, o cantar de Maria e o assobiar de Zé.

Quando as nuvens estavam indo embora, já deixando a lua despida, o vermelho que antes só se manifestava nas nuvens, agora refletia na estiagem. Zé deu um sorriso de canto de boca quando viu que a lua estava sendo descoberta, mas esse riso logo foi desmanchado-se quando percebeu que a lua estava vermelha. Maria já saía da cozinha em direção ao alpendre segurando as duas xícaras de café quando Zé a chamou.

— Maria, Maria! 

—  Já vou, Zé! Já vou! Se avexe não, homem! – Maria respondeu enquanto ia ao encontro dele. 

Maria chegou, entregou a xícara de café a Zé, que jogou o cigarro e tomou um gole do café. Maria ia sentar na cadeira de balanço, mas observou Zé mirando para o céu.

—  Que foi, meu véi? 

—  Véa, olha! A lua! 

Maria foi para perto dele, que estava apoiado em uma das colunas. Os dois olhavam pra cima enquanto tomavam o café. Alguns segundos de silêncio se formaram ao observar a cena. 

— Mas Zé… eu acho que num é a lua não. Quem já se viu lua vermelha?

— Ah, mas vai que nossinhô resolveu pintar ela hoje! – Maria ficou um pouco em dúvida

— Mas de vermelho, Zé? Logo de vermelho?

Sei não, Maria. Talvez nesses tempos a gente tenha derramado tanto sangue que ele conseguiu chegar na lua! Cê sabe, é cada coisa nesse mundão de meu Deus. Todo mundo se matando, o galo cantando antes da hora direto… Sei não, minha véa, mas eu não duvido de ser pru mode isso. 

Depois de alguns momentos em silêncio, com o barulho do vento e das cigarras sendo o único ruído, Maria responde, enquanto ainda olhava pra lua:

— É, né… Só não esqueça que vermelho também é a cor do amor, Zé. Esqueça não.

Zé ainda olhava para a lua e Maria sentou-se na cadeira de balanço tomando café. Pouco depois, Zé também a acompanhou, sentou na cadeira ao lado e entrelaçou seus dedos com os de Maria. 

Vermelho é a cor do amor, Maria. Zé não esqueceu.

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