Desaprendi tudo e, como uma criança, vou engatinhando de novo para ter o prazer de aprender novamente. É que aprendi tudo errado e agora quero errar mais, errar ainda melhor. Não importa quantas vezes eu desfaço o bordado, não ligo mais, já vi com minha avó Rita que às vezes refazer a costura inúmeras vezes faz parte, se irritar e chorar com a trabalheira perdida também faz parte, minha vó Rita é minha costureira preferida até hoje. Tudo que eu invento ela embarca na viagem, sempre assim, me vestiu de Emília e de todas as fantasias que tive, ela diz que gosta das minhas invenções porque a desafiam, eu acho que ela gosta porque me ama, eu sinto seu amor toda vez que olho ao meu redor e vejo crochê por to-da parte.
Mas como eu estava dizendo, desaprendi tudo, zerei e agora faço questão de não saber mais nada, não ser mais nada. Parei. Resetei. Respirei. Meu caso não era nem de desacelerar, tinha que ser assim, brusco. 2020 me adoeceu com uma enfermidade misteriosa e depois de meses descobri que não tinha nada grave, na verdade de tão besta deu até pra fazer piada, nem vem ao caso contar o diagnóstico porque o que vem ao caso são os meses de investigação e aflição, foi aí que se perdeu para mim o sentido de estar correta, de ter razão, de ser perfeita… Desde então estou nessa de aperfeiçoar ainda mais as minhas imperfeições, exaltar minhas falhas, expor meus medos, sustentar minhas feiuras na luz do dia. Em outras palavras: é sobre aceitar quem sou hoje. É sobre festejar internamente por estar respirando bem hoje. É sobre aquele ensinamento de Santa Teresinha do Menino Jesus – “só tenho o dia de hoje”. Acho, minha santinha querida, que ansiedade é o oposto de viver, presença é o sinônimo. E já que para amar só tenho este aqui-agora, preciso amar e evocar o Chico:
“Quando eu amo, eu devoro todo meu coração
Eu odeio, eu adoro, numa mesma oração”
Hoje não estou com pressa, hoje não quero chegar a lugar algum, mas não me abandonei, ainda tenho muitos sonhos. Quando falam que enlouqueci eu comemoro, meus olhos brilham; a lucidez é para mim uma doença macabra, estive lúcida por um tempo e quase me perdi, por pouco não voltei pra mim. Agora que estou doida e comigo, tão comigo quanto nunca antes, sinto uma serenidade angelical, suspiro com alívio grande de quem chega em casa em paz depois de uma longa viagem.
De repente me tornei a jovem mística que acredita nos sinais do universo e não posso deixar de reparar numa pergunta que várias pessoas (que não se conhecem entre si) me fizeram nos últimos dias de fevereiro: o que te faz querer acordar todos os dias? Parecia um roteiro ensaiado. Minha resposta de prontidão para todas foi “ainda ter sonhos”. Achei bonito pois nunca tinha refletido sobre isso e veio assim, como se eu já soubesse.
Mas março começou e eu mudei de ideia, é claro que despertar sabendo que tenho sonhos para realizar e planos em construção alimenta minha alma, mas o que me impulsiona mesmo a levantar às cinco da manhã para nascer junto com o sol é a minha louca paixão por sentir a vida. O que toca verdadeiramente o meu barco é o sentir. Levanto, me movo e me deito guiada pelo coração, quanto mais me desvio para procurar a razão e a lógica, mais despenco. Se o coração é meu mestre e meu guia, se é meu sentimento que fala, levo a vida com outro tom, meu caminho tem norte, voz e luz. Contemplar e saborear coisas pela primeira vez, todo dia. Preciso nesse instante sentir o viver e estar emocionada com a vida. Sei lá porque estou aqui mas não estou aqui à toa – que eu coma, oh Deus, o prato inteiro por tesão e fome, acho terrível comer sem fome. Meu camarada Vinícius vive repetindo que “a vida só se dá pra quem se deu, pra quem amou, pra quem chorou pra quem sofreu”. Ai.
Acordei de um cochilo vespertino por causa de uma criança completamente descontrolada e eufórica na calçada gritando “LIBERDADE!!! LIBERDADE!!!” Seus gritos extremamente agudos, catárticos, e de novo “LIBERDADE!!! LIBERDADE!!!”… De novo, e de novo… Não sei o que aconteceu. Mas entendo. Rabisquei na agenda: o grito purifica, grito é gozo.
O amor não tem pressa e o amor não pressiona, escrevo isto agora para interiorizar essa afirmação em mim mesma. Acredita que eu senti remorso por não responder as mensagens privadas, por não dar notícias, por não escrever para os amigos, por “sumir” e não dar conta das demandas dos que me querem bem? Me consumi em culpa nos momentos que senti as cobranças vindo. Para a minha sorte, meu encosto de Rita Lee chega e diz: eu lá quero agradar, fica quem quer. É isso, permanece quem me aceita. Não prometo nada. Cresci achando que tinha a obrigação de nunca desagradar, o que é impossível e absurdo, estou sentindo uma liberdade muito grande em me descobrir chata e responder: “não dou conta”, “não vou”, “não faço”, “não quero, sou fresca”, “não aceito”, “não sei”. Não me entenda mal, eu tenho alegria em mim e adoro dizer sim, mas neste momento gosto mais de dizer não. Estou aprendendo agora o que significa essa palavra e estou me entendendo bem melhor. No próximo verão posso estar mais expansiva, quem sabe, mas agora sou só minha. E se alguém perguntar por mim? Diz que fui por aí…
Além de chata sou um tantão egoísta: só sei falar de mim. Tenho uma autossabotadora que me diz que quando escrevo fico mais nua e exposta do que quando tiro a roupa, então me cobro, me exijo uma classe para escrever que não tenho pois só escrevo vulgaridades e só creio no amor – e em nada mais. Quando falo de afeto e de ternura podem achar que sou romântica, mas estou falando de revolução. Eu amo por pura rebeldia. Só faz amor quem tem coragem, enfrentei os últimos tempos como um soldado armado e pronto para combate. Estou no escuro mas daqui eu enxergo mais do que eu gostaria, confesso. Fecho os olhos e vejo tudo: nada no mundo passa sem passar por mim, nem um grão de areia; eu não tenho fim.
Dificilmente consigo fugir das aspas de músicas enquanto escrevo, cito-as porque elas estão sempre pairando na minha cabeça e curiosamente enquanto eu escrevia esta crônica uma música que marcou muito minha adolescência pediu pra aparecer aqui (dizer “marcou muito” é pouco, ela foi meu hino por anos), preciso ouvi-la novamente porque talvez tenha um recado. Chama-se Vienna, do Billy Joel, e nos primeiros acordes, penso: como ainda sou jovem, como ainda sou a mesma, aquela que passou ainda está. Além disso estou apaixonada, muito apaixonada e não sei o que fazer além de escrever poesias para um par de olhos coloridos, sinto cócegas na barriga sem ninguém me tocar, percebo meu coração sorrindo de entrega e nervosismo. Recentemente estive diante de muitos abismos, encarei-os com o peito estupefato porque toda imensidão me amedronta tanto quanto me encanta; fiz um pedido ao lobo-do-norte: segura forte aqui a minha mão porque senão vou me jogar. Eu te disse, desaprendi tudo e estou reaprendendo pelo prazer de estudar. Slow down, you crazy child!
2 comentários
Que leitura incrível.. passaria horas lendo Lorrana Feitosa! Quero mais!
Esplêndido.