Meu nome é Lorrana. Lor-ra-na. Pode soletrar bem devagar porque é um nome forte e macio ao mesmo tempo, bem gostoso de verbalizar. Nasci dia 4 de outubro, sob o céu da madrugada; os astros dizem que isso significa um sol em libra, um ascendente em leão e várias outras coisas que considero complexas e pertinentes, mas isso é história para outro momento. Sou filha de Ipu, interior do Ceará, o município fica no pé da serra da Ibiapaba, o que garante uma visão deslumbrante das montanhas e um calor de delirar, mas como Deus é sensato, admitiu que só a mão generosa e abundante de uma Deusa equilibraria as coisas: colocou uma cachoeira imponente de águas geladíssimas ao nosso dispor. Oxum aqui é soberana, banha tudo o tempo todo, é vista escorrendo de qualquer bairro.
Na cidade em que nasci, cresci, me criei, fui embora e retornei, o dia do meu aniversário é feriado por causa dos festejos de São Francisco, o lado bom disso é sempre vinha um parque, o lado ruim é que ninguém cantava parabéns pra mim na escola (eu era uma tímida que adorava ser o centro das atenções). Muitas pessoas faziam promessa e iam à igreja vestindo aquela bata marrom; minha avó, católica ortodoxa, devota de todos os santos, anjos e papas, vivia me aterrorizando com a ideia de sair de casa vestida de franciscana pra homenagear “meu santo”, e quando queria ser divertir um pouco às minhas custas, me chamava de “Chiquinha” só porque sabia que eu ficava zangada. Acontece que eu demorei muitos anos para me conectar com São Francisco das Chagas, ou de Assis (descobri duas décadas depois que era a mesma coisa), na realidade eu levei um tempo para aceitar e assumir todo esse misticismo que habita em mim, e que agora não posso mais fugir ou evitar.
Até os 17 anos ele pra mim era apenas uma referência do meu endereço da época, é que minha casa era vizinha ao Hotel São Francisco, pra me localizar geograficamente no mundo, eu sempre tive que citá-lo. Pra saber onde me encontrar era preciso invocá-lo, inevitavelmente meu nome sempre associado ao dele. Ainda na infância eu tinha um grande sonho (não é mais segredo, já posso contar: era ir embora de Ipu) e foi pra ele que eu recorri, amarrei fervorosamente 10 fitinhas com 30 nós e deixei no braço até se desgastarem e romperem sozinhas. Talvez ele sabia do tanto que eu achava feia a roupa dele e não me deu muita credibilidade.
Não por este desejo não atendido prontamente, mas por um conjunto de acontecimentos, logo me distanciei das coisas de cunho espiritual por um longo período, precisei sentir raiva da igreja, questionar muito, debochar da fé, viver exclusivamente da matéria. Considero um momento muito belo também. Sou a maior fã de todas as minhas fases e elas incluem muitos erros, esquisitices, deslizes e delírios.
Quando meu interesse e curiosidade me levaram a pesquisar mais sobre a vida desse santo, me deparei com um Francisco subversivo, como eu. Me vi diante de um Francisco maluco que amava e se comunicava com os animais, que nem eu. Que saiu do conforto do lar e da proteção da família para fazer o próprio caminho, caminho único e só dele. Ele, a verdade dele e mais nada. Os pés descalços. Mundano, cigano, indomável, atrevido, empático, bondoso, conseguia sentir a dor de Cristo e a dor da humanidade, protetor da natureza, do meio ambiente e de todos os seres. Deixou um recado pra gente amar todas as criaturas. Todas. Nós dois desenvolvemos uma relação de muita identificação, hoje Francisco e eu somos amigos muito íntimos.
Este ano, para driblar as aglomerações, ao invés do ritual tradicional das novenas, uma imagem enorme de São Francisco passou de carro pelas ruas, aos interioranos coube ficar na janela agradecendo, adorando-o, pedindo bênçãos… Eu não pedi nada dessa vez, estou mais que satisfeita com tudo o que tenho e protegida por um enorme manto marrom, mas dei tchauzinho porque é até falta de educação não cumprimentar nossos conhecidos.
E eu achando que o único Francisco capaz de me arrebatar desse jeito fosse o Buarque de Hollanda, me vejo completamente rendida ao amor deste outro Chico toda vez que fecho os olhos e ouço sua mensagem ao mundo em forma de oração. “Onde houver tristeza, que eu leve alegria. Onde houver trevas, que eu leve a luz.” Essa é a pretensão mais linda que eu já vi. Por via das dúvidas, se eu tiver um filho um dia, gostaria de chamá-lo de Francisco, pra dar sorte.