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Elegia do falecido felino

Como se não fosse mais existir tranquilidade, mamãe chorava em desconsolo violento. Era criança de novo. Nunca deixou de ser. Então contornei a poça densa de líquido venial e abri a carta que jazia ao lado, junto ao corpo preto do bichano. Dizia assim:

Família,

ali na quina da parede ficava a caixa de areia. Desvaneceu-se. No lugar, já não há nada. É feito minha carne, matéria e estrutura: vã. Desconsiderem, então, meus vinte e três centímetros, os quatro quilos (cinco, com o inchaço da barriga) ostentados por entre os anos, as marcas disformes no pelo raso. Desprezem as dezenas de meus filhos espalhados pelo mundo, livres e edipianos, e as concubinas insaciáveis com as quais gerei escândalos. Minhas preces pagãs e uma certa tendência ao irascível também: joguem fora tudo isso. Desmemorizem-se de mim. Eu agora me vou e não quero deixar nenhuma dessas lembranças com vocês.

Fui um felino gentil e magnânimo. Pensem sempre assim, como talvez até já cultivem no interior agora. Digo a verdade: meu temperamento foi dado a benfeitorias. As ações comprovam. Lembram da vez que derrubei o vaso vindo da China, disposto tão reluzente na estante de livros? Não foi por mal. Tenho fobia de brilho. Detesto tudo
que cintila. Prefiro escuridões, e gostaria que vocês fossem igualmente afeitos a elas.

E quando papai me pegou perto dos cigarros de tia Irene, aquela velha raquítica e indisciplinada? Recordam? Explico: era para alimentar minha dependência em nicotina. Ou nunca sentiram meu cheiro de substância? Talvez não, né? Eu o lambia do organismo, como fazia com a penugem externa. Agora percebo que disfarçava.

Ainda xeretei gavetas, escondi-me por entre lençóis, engoli sobras de café. Numa esperta manobra, juro, desembaralhei os ímãs literários de Fernando, aqueles impregnados na geladeira com as capas dos livros de Pessoa, Woolf, Márquez. Ah, as obras de Gabriel… Um delírio! Meu preferido é aquele conto lido em voz alta outro dia, quando tocava na vitrola “Let Down”, do Radiohead. Minha cabeça era acariciada mediante o melancólico virar de páginas. “Amargura para três sonâmbulos”, nunca esqueci. É um título enigmático e maravilhoso esse, um inventário afetivo sobre a morte. Amo. Obrigado, Aninha, minha irmã, por me
apresentar ao templo das letras e dos deuses. Permitiram-me um gosto de ventura.

Talvez foi ali, entre eles, que me percebi um gato escritor. Ou um incansável ladrão das observâncias alheias. Perdão: ladrão não, que fica feio. Um andarilho narrativo, errante misturador de palavras e sentidos. Fui desenvolvendo um gosto pelas geografias do verbo, as arquiteturas dos termos. De repente, melando as patas em tinta preta, vi-me traçando histórias, anotando segredos e bocejos. Furando a burocracia das minhas nada moles sete vidas.

Esta última, raspa do tacho econômica e adoentada, me fez entender: não foi nada fácil estar presente no universo, como meu frequente descansar parecia intuir. Tão certo e justo, fui-me sendo com vocês em minhas recentes e incômodas dificuldades de animal senil e ainda tão desejoso de vida. Agora apequenado, deixo este punhado de palavras para dizer que andei sobre os telhados e em tudo queria morar: no cheiro das madressilvas, no dorso da sabiá, na matéria-prima das telhas. Não na chuva, não – longe disso – mas nas nuvens nubladas, quando só restava a saudade de alguma coisa que não sei nomear. Talvez já de vocês, e que sorte é a gente sentir falta de alguém que ainda não partiu. Significa extremo querer bem, irremediável amor.

A tudo eu talvez parecesse feio, estranho, corpulento e desengonçado. Mas contornei o trauma da aparência porque sempre me senti acarinhado. Nunca isolado, apesar da cara indistinta. Nunca fugaz. Conheci a eternidade antes do previsto. Ela é realmente plena e contente. Ela tem o rosto da minha família.

Agora vocês devem estar olhando para mim estendido no chão, como sempre pensei que acabaria. Além de escritor, tenho em mim vidências. Descobri isso também. Por favor, não lamentem pelas rugas nas orelhas, no focinho, no calejar dos anos. Muito menos pelo tempo que me leva a morar em outro lar. Permaneço com vocês do jeito que a gente combinou: face bondosa, coração amistoso. Intenções do bem. Nunca é tarde para banalidades.

Dobrei o papel ao meio. Encarei mamãe – pernas bambas, rosto estampado de espanto e magia. Minha mesma reação. O que era aquilo? Sem pensar muito, tiramos a máquina de escrever da estante. Ela agora ficaria sob o solo, agarrada a Snow Bell. Talvez ele relatasse mais no infinito.

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