São Paulo. 29 de março. Fim de tarde. Uber. Ligação com uma amiga:
“Não sei o que fazer com isso. Comigo. Não sei o que fazer comigo” eu digo, me controlando para não chorar.
Sabia que ela estava analisando meu tom de voz. Era por isso que tinha insistido em falar comigo ao telefone. Queria saber como eu estava.
“Nada”, ela disse, “o tempo traz o esquecimento. Vai ficar tudo bem.”
“Eu não vou esquecer. Ninguém esquece.”
Esquecimento. Nem existe tal coisa, eu penso. Tal abstração. O que chamam por aí de esquecimento eu reconheço como um movimento de internalização. Os amores que se encerram, se voltam para dentro de nós, e passam a habitar nossos sistemas de funcionamento, a fazer parte de quem somos. Só não vencem mais a pele.
Droga, Freud. Queria nunca tê-lo lido. Mas li e, nesse tremendo agora, eu sabia que a pessoa de quem eu precisava me desvencilhar de todas as formas estava, naquele momento, se entranhando no mais profundo de mim. Me sinto invadida. Violada, até.
“Tá indo pra onde?”, a voz ao telefone soa preocupada.
“Livraria, já to chegando.”
“Ah. Isso é bom. Certo, me dá notícias. E fica bem.”
“Eu dou, amiga. Obrigada.” Me apresso para desligar a ligação, porque sei que ela vai se despedir com um “eu te amo” penalizado. E não quero ouvir agora. Não quero me sentir amada.
Há cinco minutos da livraria, me permito chorar um pouco.
O amor é um lugar onde se cai. E eu caí na minha própria altura. Eu sou essa queda. Eu sou esse rompimento. Aquela conexão, agora corrompida, havia se estabelecido num espaço (em mim) para onde todos os meus desejos, fantasias e planos mais otimistas se orientavam. O objeto se foi, mas o espaço continua lá. Oco, agora. Desabitado. Cabe a mim a exaustiva tarefa de reorientar essa energia, esses planos e esses desejos. Mas não quero. Aliás, não tenho fôlego. Quero entrar num invólucro escuro e servir ao propósito da tristeza. Quero, mas não posso. À beira de um soluço de sacudir o corpo, chego à livraria. Enxugo os olhos.
A primeira coisa que prende minha atenção ao adentrar o local é um título de Virginia Woolf. Quase caio no choro de novo. Poucas coisas se aproximam de quem eu sou como Virginia Woolf, e eu estava em uma desorganização interna tão grande, me sentindo tão deslocada em mim mesma, jogada aos meus próprios pés, que ver o nome de Virgínia me emocionou. Fui até o caixa e pedi por um exemplar de Um Teto Todo Seu. Comprei e o segurei contra o corpo, quase como num abraço.
Dali alguns minutos encontrei quem eu deveria encontrar; a única pessoa por quem já fiz o movimento de resgate na minha própria internalização. E aqui cabe um alerta: cuidado com o que você traz de volta à superfície. Eu o fiz depois de algumas várias sessões de autoanálise e, ainda assim, levei o tempo de alguns anos para estar esclarecida e, ainda assim, existe uma distância de segurança. Um ex amor é sempre um amor com prefixo.
Um ex amor é sempre incubido de uma espécie de ensino e aprendizado, mas pode sempre ecoar em imprevisíveis desdobramentos.
E esse ex amor, penso quando estou diante dele, é especial. Não esperava nenhum abalo sísmico, mas já esperava um alerta de presença. Num mundo que se estende entre tantas possibilidades, lá estava eu junto ao meu passado mais recente. E foi bom, devo dizer. Frugal, tranquilo. Fez eu me lembrar que posso me apaixonar por pessoas ótimas. Pessoas leves. Costumo tentar ver o indivíduo em sua integridade, e nessa pessoa em questão, admirei desde a adolescência sua habilidade de se conectar com o ambiente ao redor e iluminar tudo o que alcança. Fui mais luz e menos sombra enquanto estive em sua presença.
Era bom não estar arrependida. Pra variar um pouco.
Volto pra casa pensativa. Penso exaustivamente. Penso que todo fim parece um equívoco, em algum nível. E definitivamente um fracasso. Definitivamente. Penso que, talvez e por tantos anos, eu tenha vivido a fantasia de uma relação. Penso que nada do que essa pessoa fez por mim vai me constituir mais do que o nosso fim. Nada nos compõe como o fim.
“Que droga”, eu penso, praguejando aos céus pela quinquagésima vez nos últimos dois dias, “e sequer posso me dar ao conforto palatável de acreditar no esquecimento.”
Mas eu fiz uma escolha. E toda escolha é uma angústia, porque toda escolha é uma recusa de várias outras coisas. No entanto, escolher a si mesmo é perceber na sua própria figura um destino indispensável. Um destino que vale a dor de não saber. Então, ainda que soterrada num oceano de melancolia, com o olhar distraído e sentindo em dores musculares o ampliar do corpo dos meus traumas, eu fiz uma escolha.
E para a minha surpresa, as previsões nem são lá tão catastróficas. Pelo menos não na maior parte do tempo.
Mas, se você ainda está esperando por uma resposta:
Não. Você não vai esquecer. Seu/sua ex é uma parte de você. Mas trate de lembrar: uma parte sua não é você por inteiro.
Isso me ajuda a dormir a noite. Espero que te sirva bem, também.