Alguém morre neste exato instante.
Há um homem corpulento entregando sorrisos presunçosos à uma moça de aparência rústica com fios de cabelo escapando do coque no alto da cabeça que lhe devolve um sorriso afiado. Há o farfalhar das folhas, o ruído urbano, a luz fatigante e a beleza impecavelmente imóvel. É fim de tarde. Olho pela janela do carro e vejo dores absurdas amontoadas em peles reluzentes e camisas esvoaçantes. Há uma garota de feição inflexível que se pôs na direção do meu olhar e agora me fita de volta. Um sopro forte amarra nossos raciocínios no segundo em que ela cerra os olhos cor de âmbar e o vento lhe despenteia os cabelos. Há um movimento interno. Algo oscila dentro de mim. Uma espécie de desconforto me atinge e preciso mover os braços e pernas. Talvez não seja seguro olhar nos olhos de alguém. Ouço o estrondo de uma porta fechando enquanto o sol se despede agitando minha retina. Alguém morre neste exato instante. Fico esperando a dor, mas ela não vem. O concreto pulsa dentro das minhas veias e as grossas camadas de pele me distanciam do sensível da humanidade. A rotina desumanizadora me aperta o estômago, me morde os olhos e me prende entre a vigília e o sono. Não é possível ler em meu rosto qualquer reação. Alguém morre neste exato instante. Não há nada mais urgente que o espanto. Não há revolta capaz de entender os ecos desse silêncio. Há somente a vontade de vida se debatendo na dormência crônica dos dias. Alguém morre neste exato instante e as curvas do pescoço daquela moça acomodam um colar cintilante e um grupo de jovens bebe do lento derramar do tempo alheios ao desconsolo que virá lhes asfixiar. Ninguém lhes contou que a vida é íntima da brutalidade. Ninguém me disse da violência que não demonstra o menor embaraço ao se revelar nas esquinas mais afáveis da cidade. Eu nunca imaginei que a morte pudesse excitar olhares de homens com feições bondosas. Ainda quero acreditar na promessa simpática da esperança. Mas alguém morre neste exato instante e me pergunta:
como ousa?