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AFILHADA DE RITA E CLARICE

 

 

 

 

Não vou entrar em detalhes agora, mas basta dizer que: fui educada para sentar de perna cruzada, não arrotar, não irritar homens e por aí vai. Eu fui primeira filha, primeira sobrinha, primeira neta num berço católico. Já dá pra saber o bastante e imaginar o resto porque esse contexto é não é raro.

Algum fator genético, razão sobrenatural ou as duas coisas y otras cositas más devem explicar o porquê de eu, desde que sou eu, ter uma natureza tão teimosa – ou “um gênio tão forte” como diz minha gente.

Eu não aguento a resignação, Clarice. Acho de uma extrema sorte Oxalá ter me feito ousada, porque o que me salva é a revolta, “ah, como devoro com fome e prazer”.

Durante a minha adolescência eu fiz tudo o que se fazia numa adolescência rebelde, tipo pintar o cabelo de azul, ouvir Avril Lavigne, ler pink wicca, beber vodca.

Nesse período uma espécie de ingenuidade juvenil não me deixou sentir a densidade das coisas maldosas que algumas pessoas comentavam. Comentavam de mim o que se comenta de qualquer mulher que tem o atrevimento de ser ela mesma. Hoje eu chamo de atrevimento porque acho que é preciso muita coragem pra ser você mesmo.

A melhor coisa que eu acho no mundo é ser mulher, mas eu já desejei não ter nascido mulher inúmeras vezes. Ser mulher tem dores profundas e delícias intensas. Recentemente vivi uma dessas delícias, reencontrei duas amigas de infância para uma sessão de fotos. As fotos eram pra loja de lingerie que minha prima abriu, eu vi essa prima pequenininha e agora está se tornando uma empreendedora, abrindo um negócio que tem um conceito incrível de mostrar corpos diferentes, sem edição, corpos reais, naturais. Uma coisa linda de se ver, de encher o peito! Foi uma honra poder apoiá-la. Nessa tarde, amigas que brincavam de só de calcinha há vinte anos atrás se reencontraram pra vestir umas calcinhas e mostrar pro mundo que nosso corpo é lindo, que é importante se aceitar. Nesse dia eu senti muito orgulho da gente, honrei a trajetória de cada uma de nós, me senti feliz por ter tão boas e selvagens amigas de infância, por poder encontrá-las hoje e vê-las tão engajadas com o feminismo, assim como eu. Nossa existência é revolucionária.

Eu sinto toda a sacralidade do meu corpo, me conecto com minha ancestralidade feminina, tenho uma verdadeira devoção pelas divindades femininas, por mim mesma, pelas minhas irmãs. É minha maneira de resistir: pelo viés da espiritualidade, pelo viés do amor – afeto também é revolução. Se não vou por esse caminho, fico perdida, porque ainda não aprendi a lidar muito bem com a crueldade. E ser mulher às vezes é cruel.

Tudo nesse momento me deixa mais sensível, e eu estive digerindo com muita dor as notícias da internet. Fui tomada por uma melancolia por dias… Como mexeu aqui, não tenho nem palavras, e a cada dia emudeço mais de tanta perplexidade.

Perdi minha ingenuidade. E quando falaram mal das nossas fotos, pensei: não há nada de mal. Pronto. Acontece que dessa vez eu posso perceber o quanto expor o meu corpo ainda é uma grande questão para a sociedade. Acho lindo a discrição, mas minha Natureza não permite que eu me esconda. Eis aqui o tempo em que o corpo de uma mulher ainda a condena. Tudo bem, não estamos aqui à toa, somos muitas. Tive um sono tempestuoso e amanheci em cólera, Clarice, o mundo não te agrada e nem a mim.

TPM, lua cheia, pandemia, notícias absurdas, eleições; à flor da pele, me permito à tristeza se ela chega, às vezes só aumenta, este é basicamente o resumo de 2020: só piora. Não queria fazer uma crônica raivosa, mas estou indignada.

Como eu disse, a rebeldia é uma dádiva. A rebeldia limpa. Ao meu lado estão sentados os que querem mudar o mundo também. Perceba que eu estou emudecida. Eles que não queiram me ouvir gritar, pois no pacto que fiz comigo mesma não há concessões para retroceder.

À Deus, tenho uma prece: Senhor, me proteja da caretice. Amém!

A frase do biscoito da sorte: “Só a luta muda a vida”, pixo que tinha perto da minha antiga casa.

Playlist de hoje: Reza – Rita Lee
Vá Se Benzer – Preta Gil e Gal Costa

 

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