O bater no relógio parecia silencioso quando minha alma e suas vagulhas levantaram-se para escrever no frio obscuro da madrugada. Para um autor, aquelas horas que mesclam a paz no mundo, onde as crianças e os velhos dormem, com o caos dos corações que seguem pelas esquinas atrás do ópio para esquecerem que o amanhã sempre virá, independente de quem estará vivo ou não.
Minha droga são as linhas. Nelas me rasgo, grito, berro, embriago e me afogo, mas naquela noite foi diferente. Sabia que seria a última! Sim, assistir a própria morte é terrível mas existe um certo prazer. Podem dizer neste parágrafo de frases curtas que isso é algo masoquista, mas sentir o fim é reviver e dói, dor tão grande que cheguei a rememorar o rompimento de minha placenta quando vim para este mundo e o cortar do cordão que me fez um ser solitário, carma que levarei até depois da eternidade.
Dentre dessa confusão de ideias, lembrei de Saramago dizendo que temos a necessidade de provarmos sempre quem somos e desejar deixar algo, pois é uma das poucas certeza que nos faz eternos, já que o existente mundo do outro lado não sabemos se há. Foi nesse intuito que fui digitantando em meu escritório os meus pensamentos em nove longas crônicas que visavam encerrar um livro que estava finalizando. Na verdade, precisava de dez, mas no momento que fui escrever esta última veio a pontada…
Era dia, o Sol havia nascido e eu não tinha morrido! Que tortura, tanto esforço, desgasto e falta de sono para não entender que tenho mais um tempo há pércorrer. Abrir as cortinas finas e me dei de cara com a luz brotando no horizonte em uma semana chuvosa da minha cidade. Acho que pela primeira vez, desde a vida adulta, me prostrei diante o amanhecer e estava sóbrio, sentindo todos os raios adentrar naquela carne quente que nesta hora achava já estar imóvel.
Na verdade, entendi que aquele sentimento de desamparo não era de fim, mas de recomeço. Não era o dia em que se dava outra oportunidade da luz. Chorei! Me acalentei como se fosse um bebê, mas sem perder a lucidez do velho que acha que viveu tanto. Botei uma música para tocar, encomendei flores para uma pessoa querida, dancei no escritório e sentei diante o papel em branco e escrevi “estou vivo, mesmo que outro eu tenha se despedido nesta madrugada”.
Simples ou não, decidi dormir e não escrever aquele último texto do livro que pretendo lançar. Não sei o que senti, mas por instantes lembrei de Guimarães Rosa falando que a felicidade está presente nos pequenos instantes. Como explicar isso, invoco outro poeta, agora o maranhense Ferreira Gullar para dizer: será arte?
Por Heitor de Almeida