Deitado nesse longo e imposto descanso, assisto mais um fim de tarde. Sempre os detestei e agora ainda mais, junto da flacidez de minhas pernas e a magreza do meu corpo. Uma coisa me consola, estou como meu país: deitado em berço esplêndido e sem hora para acordar. Entre um cochilo e outro tanta coisa me passa, as vezes o medo do fim, por outras a preocupação do recomeço.
Nesse turbilhão de emoções de um coração pulsando junto de uma mente diagnosticada depressiva, homenageio todos os que me mataram. Sim, os que sanguineamente causaram minha prostração. Os pronomes e artigos não podem definir gênero, espécie ou raça. Muitos me golpearam na estrada desde os sonhos, amores, ilusões e sentimentos carregados por pessoas ou não.
Muitos me mataram e eu me vi morrendo sem fôlego em um altar, com taquicardia e vista turva. Por segundos olhei Cristo, e me comparei à sua dor ao ser posto na cruz diante o público que clamava sua punição. Em instantes, carreguei a dor do mundo e em versículos rememorei o rasgar das cortinas e o grito: “pai, por que me abandonastes?”
Dói ser assassinado, mas ao ver meus dedos, eles também estão sujos. Bem, amigo, eu sou um dos homenageados deste triste fim de tarde já que também sou cumplíce da minha própria morte, dos desejos contidos, das palavras abafadas, do choro que parece ter me secado no decorrer dos anos. O medo me matou e à ele levanto o primeiro brinde.
Medo de falar, de sentir, de respirar…Medo de viver já que essa vida mais parece uma eterna roleta de cassino e a única vez que pude jogar, perdi dez dólares no “vermelho 27”. Uma derrota não significa a existência. Me deparei com isso ao fracassar mais uma vez na sala de exames fazendo um eletrocardiograma que fatidicamente me falava da minha saúde irretocável Falhei no ato de morrer, o que não quer dizer que não me mataram (ou não me matei?).
Olhe, por favor! Olhe meu corpo golpeado, repleto de marcas de balas de uma guerra existencial de tirar a orelha de qualquer Van Gogh. Desculpe intrometer a arte, até o dia da minha última morte me via como um artista frustrado em meio à impossibilidade de atuar, desenhar, cantar ou algo do gênero. Ao mesmo tempo, no dia que me mataram, desnudo de alma, no purgatório frio de minhas emoções, vi que ainda tinha uma arma, a palavra, e esta quando vem por ser escrita me liberta, me alivia, me acolhe mesmo diante os nãos do mundo.
Se eu tivesse em um bar de esquina pediria outro brinde, mas como estou proibido de frequentar a boêmia, falo agora para o sol poente e triste: Viva os que me mataram!
Obrigado por forçarem o renascimento e a dor de voltar a romper essa placenta, sentindo que o frio do mundo é muito feroz, mas o útero materno não pode ser morada eterna. Repito, aos que me mataram, um beijo cínico e quase que sensual, amanhã acordarei novamente, não sei se melhor ou pior, mas tenham a certeza, meus dedos gritarão algo, nem que seja um enorme “socorro”!
Por Heitor de Almeida