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Pousos gentis

Após dois anos de confinamento, enchi-me de coragem e sobrevoei mares levando
comigo luto e desencanto.

O primeiro pelas mais de 6 milhões de vidas humanas perdidas para a Covid no planeta
[665 mil só no Brasil, incluídas minha irmã e minha mãe]; e o segundo pela virtualidade
tóxica no único elo social permitido em tempos pandêmicos: as redes cheias de ódio,
comentários perversos e informações falsas.

Perfis que se consideram justos e bondosos não percebem a barbárie que falam e
praticam. Que triste! As plataformas de relacionamento escancararam a maldade
adormecida que nos assombra de quando em quando. Basta ler um pouco sobre a
história da humanidade para reconhecer que estamos atravessando um momento
perigoso. Que não demore para desnudarmos a monstruosidade travestida de bem.
Ressalto que não estou imune, trata-se aqui de uma reflexão na qual me insiro.

Embora eu tenha a sorte de ter a escrita como ofício [“a literatura salva”, já repetiram
inúmeras vezes], tornou-se insuportável conviver com essa carga. A vida nos exige
bravura, mas eu já havia consumido toda a cota. Eu precisava descongelar alguns
sonhos.

Na aterrissagem em chão português, meu espanto por algo que no passado eu achava
bobo: aplausos para o comandante da aeronave. E nem foi uma “aterragem” [em bom
idioma de Portugal] perfeita; um forte impacto no solo, o receio de que os freios não
funcionassem e solavancos que fizeram rolar minha garrafinha d’água mineral até a
cozinha.

Há muito eu não presenciava ações coletivas de gentileza entre estranhos. Foi deveras
simbólico. A singeleza daquele gesto marcou o meu reinício de esperançar na
humanidade. Esperança de retomarmos o longo processo civilizatório construído a duras
penas e que descambou recentemente sabe-se lá pra onde. Esperança de que há futuro
para a nossa espécie. Recuso-me a abortar a esperança.

Foram dias de intenso e rico aprendizado com pessoas diferentes, línguas, ideias,
origens, profissões, gerações e idades diversas. É possível, sim!

Retornei pra casa com a certeza de que o Brasil e o mundo necessitam urgentemente de
empatia e pousos aclamados. A desconstrução do luto, essa ainda virá.

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