Não é todo dia que me reconheço saudosista, mas na semana do aniversário da minha cidade mergulhei fundo no passado.
Devo o exercício à consternação de um amigo que deveria estar feliz por ter comprado afinal o seu tão sonhado cantinho. O problema é que ele, um democrata convicto, percebeu tardiamente que vai habitar em uma rua batizada com nome de ditador.
Tentei consolá-lo de que nome de rua é um detalhe de pouca relevância, apenas uma sinalização fria afixada nos cruzamentos [“Não é!”, ele foi logo me interrompendo], e que não há como escolher a morada a partir do indivíduo que batiza a rua, prossegui. Ele rebateu que endereço é parte indissociável da nossa identidade, tanto quanto o nosso nome, CPF, profissão ou data de nascimento: “É informação obrigatória em qualquer cadastro, do mais sofisticado ao mais mequetrefe; gênero e religião são hoje opcionais, mas endereço permanece indispensável; a todo momento serei forçado a associar o nome do tirano à minha pessoa”. Espiando por esse prisma, só tenho a lamentar por ele.
Da pesquisa que me dispus a fazer devido ao seu protesto-desabafo, acabei descobrindo uma Fortaleza poética e inspiradora, com ruas nominadas de tribos originárias: Rua dos Tabajaras, dos Tremembés, dos Cariris, dosPotiguaras, todas situadas no bairro que já se chamou Praia do Peixe, atual Praia de Iracema, nome da bela índia tabajara que teve o infortúnio de se apaixonar pelo invasor branco português, criação do grande romancista cearense José de Alencar.
Tivéssemos mantido o batismo lírico de nossas ruas, teríamos nos desviado da armadilha que sustenta a vaidade imortal de poderosos, sejam ou não déspotas provenientes de períodos históricos sombrios, e meu amigo não estaria enfrentando tal lástima.
Neste 297º aniversário da cidade originalmente habitada pelos povos indígenas e colonizada por invasores franceses, holandeses e portugueses, proponho o resgate poético na identificação de suas vias, bairros, praças, prédios e monumentos. Moraríamos na rua das Flores, Alegre, da Aurora, da Curva, do Amor, do Poente e infinitas outras possibilidades.
Seríamos mais felizes: Fortaleza e viventes