Nossa primeira angústia é a da separação no parto, quando deixamos de ser um corpo para nos tornarmos outro. Com o nascimento nos percebemos separados, e se perceber separado é deduzir-se faltante. Algo foi perdido. Algo precisa ser preenchido. E então ele entra em cena: o tal do mito do amor, aquele que vai ofertar-nos a solução para o sentimento de falta – uma narrativa romântica. A ideia do encontro amoroso, onde dois corpos se unem numa fusão que figura-se como o caminho para a felicidade completa, tem ligação direta com a impressão de vazio.
O que caracteriza a narrativa do amor romântico é o amor absoluto, soberano, completo, que confere sentido à vida, que promove o “encontro de almas” e realiza o “destino” – aquele que carrega o fundamento da nossa existência. O encontro amoroso fecharia, em tese, todos os nossos buraquinhos existenciais. Para que assim – e somente assim – encontremos a felicidade plena.
Platão, em O Banquete, já trazia essa narrativa com Zeus desfazendo a fusão de dois corpos e condenando-os à busca pelo reencontro. É o mito da alma gêmea: a procura pela outra “metade” que guarda o sentido do amor. O sentido de si. O sentido da vida.
Enquanto movimento artístico, o romantismo apresentou, como efeito do amor absoluto, a morte. Goethe (clássico representante do movimento), narra, em seu romance “Os sofrimentos do jovem Werther”, a história de Werther, personagem principal que se flagra em uma desmedida e tempestuosa paixão por Carlota, que fora prometida para outro homem. Na narrativa temos o amor incontestável, correspondido, vivo, mas impossível de acontecer. E, diante da impossibilidade de confirmar-se completo, o protagonista tira sua própria vida. Com esta obra, Goethe originou o que foi denominado Efeito Werther, onde as pessoas passaram a copiar a narrativa de seu suicídio.
Outro clássico é Romeu e Julieta, de Shakespeare. A trama todo mundo já conhece: dois jovens apaixonados, oriundos de famílias rivais, não podem ficar juntos e resolvem bolar um plano: Julieta simula a própria morte, Romeu acredita, suicida-se, e Julieta, ao descobrir que seu amado está morto, suicida-se também. E essa, meus caros, seria a prova máxima do enlace amoroso – juntos no amor e na morte.
No cinema, a fórmula clássica dos filmes de amor também faz uso dessa narrativa, onde dois amantes vivem um romance de magnitude monumental, intenso e dramático. O símbolo da união é sempre o casamento – o final feliz. Não importa se a mulher, em uma prova de “amor”, retira-se de seus planos e aspirações profissionais para estar com um homem. Ali estava sua felicidade completa. Porque o feminismo levou para as narrativas a mulher bem-sucedida, com uma ilusão de liberdade mais ampla e aguçada, mas que sem amor, se reduziria a nada.
A fórmula clássica, no entanto, tem soado cada vez mais jurássica. A modernidade realizou-se na ideia de que, talvez, a felicidade plena – especialmente a da mulher – não habite no relacionamento monogâmico tradicional. Ou em qualquer relacionamento.
Fato é que os romances têm apresentado novas narrativas para o amor. A exemplo disso: a trilogia (obra-prima) Antes do Amanhecer / Antes do Pôr do Sol / Antes da Meia-Noite (Richard Linklater, 1995, 2004, 2013): dois jovens, Celine e Jesse, se conhecem no trem, desfrutam de um dia juntos, traçam uma conexão em torno de diálogos sobre a vida, se apaixonam, planejam um reencontro. Nos filmes posteriores, a paixão ainda está lá, pronta, mas a realidade se impõe com complexidades pragmáticas. Não há gestos homéricos, dramas brutais ou dores absurdas – há a realidade.
Para citar outro exemplo: (500) Dias com Ela (Mark Webb, 2009). Apesar de gerar interpretações destoantes, o que marca são as palavras do narrador nos minutos iniciais: “Esta não é uma história de amor”; Summer não compra o arranjo tradicional do amor romântico. Tom, por outro lado, sonha em vivê-lo. Os dois se encontram. Há quem interprete Summer como vilã por partir o coração de Tom, e há quem assuma que suas intenções sempre estiveram claras. E estiveram, sim. Mas entendo a dificuldade de processar uma comédia romântica que se desloca para outro tipo de relação.
Outros modelos de narrativas para o amor vêm sendo produzidos. São histórias de amor imperfeitas, falhas, pé no chão. Que falam sobre a modernidade nos relacionamentos mas que também dão notícia de nós enquanto indivíduos:
Sabe os buraquinhos existenciais? Aqueles onde o mito do amor atua – muito bem articulado – dando-nos a impressão de que o amor – e só o amor – é capaz de tapá-los? Cuidado ao tentar cobri-los. São nesses buracos existenciais que a nossa vivência se realiza enquanto particularidade.
Somos seres incompletos. Essencialmente sozinhos. Não há quem possa resolver a nossa solidão porque a solidão não deve ser resolvida. Amor não é isso, não. Amor é perceber o outro como sujeito. Solto. Só. Para além de nós, para além do amor.
Amor é outra coisa.