Há exatamente um ano atrás eu participava da minha última reunião pedagógica, do último encontro presencial com os alunos de uma turma que acabara de conhecer, da última reunião sobre um projeto que não seria executado, da última aula em uma sala prática da Universidade; sem ao menos saber disso. Lembro da ansiedade enquanto a professora anunciava os cuidados que deveríamos tomar, pois o vírus já estava circulando na cidade. No dia seguinte, um e-mail da coordenação informava que as aulas estavam temporariamente suspensas. O primeiro lockdown chegava e com ele muitos medos e inseguranças, mas havia também uma esperança de que logo as coisas seriam resolvidas e tudo voltaria ao normal. Era um momento de reclusão necessário para que os sonhos, e projetos, e trabalhos pudessem então acontecer com segurança. Afinal, era de vidas que estávamos falando.
Um ano depois, poderia dizer que estamos exatamente no mesmo lugar que estávamos quando tudo parou a primeira vez, se a situação não fosse ainda pior. Nós, artistas da cena, estamos há um ano impedidos de realizar nosso trabalho de maneira satisfatória. É verdade que, felizmente, surgiram muitas oportunidades – como a Lei Aldir Blanc, leis estaduais e municipais, ações do SESC e inúmeros festivais adaptados para o formato online, que permitiram que, de alguma forma, a arte e os artistas continuassem resistindo. Nos reinventamos, nos adaptamos a novas formas de expressar nossa arte, nos colocar no mundo, sermos vistos. Estamos nos adaptando a novas formas de sobreviver. Mas essas “novas formas”, essas novas linguagens, realmente nos arrebatam como acontecia quando estávamos em cena, num palco ou na rua, diante de um público?
Acredito que falo não só por mim como por muitos outros artistas da cena – do teatro, da dança, da performance, colegas e amigos, com quem estive trocando ao longo desse período, que a resposta é NÃO! Quando migramos para o espaço online, virtual, o teatro – que é minha área de atuação, deixa em alguma instância de ser teatro, pois precisa de aparatos e elementos da linguagem do audiovisual para acontecer. E não me entendam mal, esse teatro híbrido, possível, tem o seu valor e sua importância, e isso é inquestionável – afinal, é como muitos grupos e artistas têm conseguido o seu sustento e como a arte teatral tem conseguido se manter viva e presente. Mas ele não me satisfaz. Muito pelo contrário, me frustra.
Me frustra porque não me parece completo, porque não me proporciona o encontro, porque não me faz sentir tão vivo, porque não consigo me sentir instigado a criar assim, sozinho, no meu espaço particular. Para mim, o teatro não é só fazer e mostrar, é todo o processo desde o momento que tomo um banho, visto minha roupa de trabalho, saio de casa até o espaço de criação, encontro meus colegas e, com eles, me lanço no desconhecido, dia após dia, semana após semana, inventando, transformando, lapidando, até que estejamos prontos para encontrar o público; e as pessoas chegam para nos assistir, comprar o nosso jogo, respirando junto com a gente, transmitido calor, pelo período de tempo que for necessário, presentes no momento aqui-agora em que tudo acontece.
Fomos obrigados a abrir nossas casas, nosso espaço de ócio, de respiro, de descanso, para as telas, a transformar nosso quarto, nossa sala, quando muito nosso quintal ou nossa garagem, em um espaço criativo, inventivo. Espaços que, na grande maioria das vezes, não cabem tudo aquilo que queremos colocar para fora. Nossas imagens chapadas em uma tela de computador ou celular, sem um ruído, sem um cochicho, sem ouvir uma outra respiração, sem nem mesmo, muitas vezes, perceber o público. É solitário demais para mim, e o teatro não deve ser solitário. O teatro é arte do encontro.
O pior de tudo é que não temos expectativa nenhuma de quando as coisas vão retornar ao que nós conhecíamos, se é que vão. O fato é que fomos os primeiros a parar e seremos os últimos a voltar. Até lá vamos sufocando na nossa frustração, vamos deixando nossos sonhos e anseios guardados, suspensos, lutando para que não sejam esquecidos, para mantermos a esperança de que um dia, em breve, possam sair do papel e ocupar esses espaços dos quais hoje somos privados. Enquanto isso, buscamos nos adaptar ao novo normal para conseguir o mínimo daquilo que precisamos para sobreviver, como artistas e indivíduos.