Refletir sobre Saúde Mental em períodos de crise (singular ou coletiva) como desenha-se o cenário atual é antes de tudo interrogar-se o que mais ela visibiliza? Antes da pandemia do novo agente do coronavírus vivíamos em outra pandemia que era da individualização e do modelo do acúmulo. O contexto era de uma sociedade com inúmeras dificuldades em termos de validação do outro e de cooperação. Uma grande parte das pessoas estava infectada de desumanização e emocionalmente anestesiada. O desequilíbrio promovido pelo flagelo da COVID-19 dentro do nosso momento civilizatório suscita um curso natural pelo luto. Compreendendo o luto não restrito ao processo de elaboração associado à perda por morte física, mas, enquanto resposta normal de dor que todos temos frente ao rompimento de um vínculo significativo seja este concreto ou abstrato. As medidas de biossegurança, especialmente a quarentena, colocam em xeque vários vínculos/arranjos antes tidos como sólidos e que agora assumem fragilidades avassaladoras. As desorganizações sociais, econômicas, políticas e psíquicas provocadas pelo vírus trazem implícita uma convocação a reconfigurarmo-nos frente ao estilhaçamento das nossas representações. Guardadas as proporções pode-se usar a metáfora de uma queda de energia inesperada que faz emergir o chamado para se recriar já que o fluxo anterior, os movimentos antes empreendidos não mais são possíveis. É um desafio para nosso repertório emocional, visto o risco da aniquilação real e/ou subjetivo.
Ao nascer deparamo-nos com a nossa crise inaugural. O nascimento é um transcurso doloroso e desconfortável. Já surgimos com sofrimento e contingência para adaptação e resiliência. Neste surgimento também somos amparados por uma rede que nos torna humanos. Somos seres sociais. Somos coletivos e é aí que reside o grande nó engendrado pelo isolamento neste instante no qual somos assolados pelo inimigo “invisível” que tem o poder de paralisar e de subjugar existências e que deflagra uma crise psicológica sem precedentes marcada pela incerteza sobre o futuro aliada ao desconhecimento de tratamentos eficazes e que desestabiliza a população como um todo, mas em especial aqueles que trabalham nos serviços essenciais (coleta de resíduos, farmácias, supermercados e equipamentos da saúde e assistência social), inclusive, os profissionais das mais diversas categorias da área da saúde que ocupam função essencial na linha de cuidado aos que estão enfermos. Grande parte destes profissionais têm como sombra o medo de contrair o vírus e transmiti-lo para sua família, além de uma série de sentimentos que eclodem pelo manejo das demandas dos pacientes os colocando numa condição de vulnerabilidade aumentada para o estresse em razão das particularidades das profissões e dos ambientes de trabalho.
O distanciamento social levou muitos às suas casas, tanto o lugar físico da ordem da construção civil quanto ao corpo, morada que por vezes não era habitada em decorrência de excessos e uma velocidade estéril de vida. Alguns estão descobrindo que não habitavam a si mesmos e enxergando procrastinações que faziam quando havia mobilidade. É fato que a tempestade é a mesma para todos e exigiu uma readaptação de forma abrupta, porém, os “barcos” são diferentes para cada um e há inclusive os que não os possuem. Algumas pessoas estão à deriva na cama, no próprio tédio, outras assumiram a lógica da produtividade a qualquer preço. Em um ciclo como este, para alguns os sintomas em sua diversidade (somatizações) se colocarão no lugar da palavra já que a identidade foi fomentada numa lógica de que o sofrimento não pode ser vivido o que torna mais difícil lidar com o inomeável. Enveredamos por uma fase em que questões emocionais que antes eram apenas empurradas se atualizam e exigem respostas. Muitos estão buscando encontrar soluções para como preencher a vida quando as escolas, os shoppings, seus próprios espaços de trabalho e outros lugares que davam sentido à existência estão “fechados”? Alguns estão se sentindo invadidos e atropelados pela impotência que o vírus ecoa, outros estão usando de diálogos internos e virtuais como recurso para lidar com as angústias encontrando na narrativa uma grande manjedoura para seus anseios e comprometidos em assumir novas lentes para a construção de novos enredos biográficos. A disseminação da COVID-19 é desencadeadora de estresse coletivo, porém, cada um dá e dará cotidianamente seu(s) sentido(s) que podem ser os mais plurais.
O coronavírus, suas ameaças e seus efeitos podem ser interpretados como um hóspede indesejado ou um companheiro dialógico. Algumas pessoas escolherão, por inúmeras questões, colecionar frustrações outras podem decidir ver e aprender com o caráter pedagógico da dor a partir deste lugar completamente novo a ser explorado. Faz-se imperioso salutar que respeitemos nossos limites. Não é simples, mas é possível escavar as nossas competências e recursos internos assumindo o papel de arqueólogos de si na busca pela estabilidade emocional.
A quarentena pode ser um gatilho para transtornos mentais, mas também anexa uma janela de oportunidades para ressignificações de tudo aquilo que até entrarmos na diligência do distanciamento social configurava como prioridade e que agora nem sequer é viável devido às orientativas sanitárias. Velar pela Saúde Mental transpassa exercitar nossas práticas pessoais, as formas como respiramos, nos alimentamos, como cuidamos do corpo e como cuidamos da mente. Emaranhada a estes processos está a urgência de que cada pessoa produza de forma artesanal suas práticas de cuidado. Não há receita. Nunca será da mesma maneira para todos. Não é possível nem salutífero que as mesmas estratégias funcionem de forma generalista, porém, em cada ser humano há aptidão para (re)construir e (re)configurar tudo que o cerca física e simbolicamente (na dimensão dos afetos). Cada sujeito detém a sua caixa de ferramentas e precisa dar-se conta que em um momento de tantas incertezas e percepções de ausência do saber e do controle há diversas coisas que sabe e que são úteis para manejar as demandas que eclodem em momentos ansiogênicos. Este é o tempo no qual se evidencia que a riqueza de um mundo interno é o patrimônio inalienável. Faz-se crucial encontrar as saídas idiossincráticas sobre o que ajuda a respirar em um contexto de tanta falta de ar.
Cuidar da Saúde mental permeia um desbravamento de caminhos e sentidos imaginários e reais que se dão a cada dia e a cada encontro conosco e com os outros. Considerando que nossas emoções são nossos termômetros, monitorá-las é relevante, já que alguns sentimentos e sensações podem impedir o fluxo de vida! Nomear e buscar compreender o que eles estão comunicando é imprescindível na empreitada de expansão da capacidade de resiliência que perpassa flexibilidade com nossos objetivos e cobranças e a exploração das infinitas possibilidades humanas.
A CRISE oportuniza reinvenções e inclusive a retirada do S da palavra que nos faz enxergá-la: CRIE!!!! É fato que algumas experiências não são escolhidas, mas sempre carregam embutida a oferta de entrar em contato com vários novos, inclusive, novas descobertas a seu próprio respeito. Quando somos confrontados com nossas inabilidades somos também convidados a saber inclusive quem somos de fato e sair da caverna enveredando por uma jornada com perdas e ganhos (os quais são intrínsecos ao existir). Talvez a pergunta primordial para esta fase que é muito nova para todos é como vou/vamos sair deste processo? Podemos caminhar por resoluções como a escuta que é um dos princípios básicos de ação dos Primeiros Cuidados Psicológicos, aprender a escutar com seu(s): » Olhos ›› proporcionando atenção exclusiva; » Ouvidos ›› ouvindo verdadeiramente suas preocupações; » Coração ›› com carinho e respeito (OPAS, 2015). As soluções atravessam medidas internas e comunitárias de solidariedade que irão reverberar para além do período de quarentena. Esperançemos!!!
Psicóloga especialista em Oncologia (Residência Multiprofissional)
CRP 11/09717