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Por que parou, Moraes? Parou por quê?

Nesta segunda, 13 de abril, por volta das seis da manhã, o coração de Moraes Moreira parou de bater. Não é pouca coisa, mesmo quando comparado o triste acontecimento ao contexto nacional e mundial dessa pandemia miserável. É um grande baque, de dimensões sísmicas, no já moribundo universo da MPB.  

A música popular brasileira de qualidade perdeu um grande representante, um militante de peso, um inquieto e inspirado criador, apesar de não estar, há algum tempo, na zona visível do sucesso.

Dentre os cinco formatos de shows que oferecia em sua página no Facebook, dois meses antes de morrer, e apresentava Brasil adentro, o mais recente era “Elogio à inveja”, em que, voz e violão irmanados, interpretava “canções que gostaria de ter feito”, como confessava, de autores das antigas, como Marino Pinto, Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues, Wilson Batista, Dorival Caymmi, Assis Valente, Ataulfo Alves, Garoto, passando por Vinícius de Moraes, Roberto Carlos e Gilberto Gil. Era um show intimista, como se costuma dizer, uma autoterapia musical. 

Moraes, como se nota, continuava produzindo, e muito, nos últimos tempos, inclusive compondo a maioria de suas obras com letra e música – fato não tão comum ao longo de sua cinquentenária carreira, iniciada em 1968, quando se juntou a Luiz Galvão e Paulinho Boca de Cantor e fundou as bases do que seriam, logo, logo, Os Novos Baianos, desde o início com o reforço do guitarrista Pepeu Gomes e da exuberante cantora Baby Consuelo.

Foram muitos discos gravados. Pelos Novos Baianos, foram três LPs – os primeiros da carreira da trupe, em 1970, 1972 e 1973, sendo o de 1972, intitulado Acabou chorare, um marco histórico, um trabalho espetacular, que tinha, além da faixa-título, a esplêndida “Preta pretinha” e “A menina dança”, todas de Moraes e Galvão. Mas o disco é todo fantástico e começa com a regravação (de rara felicidade!) de “Brasil pandeiro”, de Assis Valente.

Moraes Moreira saiu dos Novos Baianos e seguiu carreira solo, a partir de 1975, mas voltou a cantar com os antigos amigos em dois momentos, em 1997 (registrado o encontro no CD duplo Infinito circular, pela GloboPolydor) e em 2017, na comemoração de 45 anos do consagrado  Acabou chorare. O show Acabou chorare – Os Novos Baianos se encontram acabou virando CD editado pela Som Livre.

Na carreira solo, foram 27 trabalhos individuais: o primeiro em 1975, Moraes Moreira, pela Som Livre, e o último em 2018, Ser Tão, pelo selo Discobertas. 

É difícil, particularmente aos que apreciam sua obra, como é o meu caso, apontar os melhores materiais da trajetória de Antônio Carlos de Moraes Pires, o “Moreirinha”, como queria Baby Consuelo, hoje Baby do Brasil, mas, entre seus grandes trabalhos, não se pode deixar de apontar, por ordem de lançamento:  Cara e Coração, de 1977, pela Som Livre (com a inesquecível “Pombo correio”, de Dodô, Osmar e Moraes, e o ótimo xote “Hino nordestino”, só de Moraes); Lá vem o Brasil descendo a ladeira, de 1979, pela Som Livre (que, além da clássica faixa-título, de Moraes e Pepeu Gomes, contava com “Pelas capitais”, de Moraes e Jorge Mautner, “Chão da praça”, de Moraes e Fausto Nilo, “Feito Muhammad Ali”, de Moraes e Abel Silva, e “Eu sou o Carnaval”, de Moraes e Antônio Risério. Um discaço!

Continuando a lista dos mais mais de Moraes. A terceira indicação recai sobre Bazar brasileiro, lançado em 1980 pela então novata gravadora Ariola. Um disco impecável, que ia do forró à seresta, do frevo à canção. Belíssimo! Cito “Meninas do Brasil”, obra-prima da parceria de Moraes e Fausto Nilo, que já rendeu coisa de 44 músicas, um quarto delas com terceiros parceiros. E muitos clássicos do cancioneiro nacional contemporâneo. Mas o bolachão ainda contava com “Grito de guerra”, de Moraes, Toni Costa e Antônio Risério, que abria o disco de forma contagiante; “Forró do ABC”, de Moraes e Patinhas, continuava o seu compartimento dançante; “Pessoal do alô”, de Moraes e Antônio Risério, dava-lhe o tom carnavalesco; a bossanovista “Asas de Brasília”, de Moraes e Fausto abria o lado reflexivo do disco; “Lenda do Pégaso”, de Moraes e Mautner, chamava a criançada a participar da festa; e, depois da instrumental “Todos nós”, de Davi Moraes, seu filho, que o acompanhou nos palcos e estúdios desde os seis anos de idade, o trabalho fechava a conta com a canção “Meninos do Brasil”, de Moraes e Abel Silva. Maravilhoso!

Coisa acesa (de 1982, pela Ariola) é o quarto grande disco de Moraes Moreira. A faixa-título, mais uma de Moraes e Fausto. Em tom de bolero, “Marília”, de Moraes e João Donato abria os trabalhos demarcava o ecletismo e, paradoxalmente, a regularidade do material reunido.

O LP (depois, CD) Cidadão, de 1991, pela Sony Music, outro nesta seleta lista, tem na faixa-título um hino à libertação social dos afrodescendentes e sua elevação à condição de cidadãos. O tom delicado de ciranda dado a “Leda”, de Moraes e Paulo Leminski, é tocante. “Cidade dos brasileiros”, de Moraes e Abel Silva, tem a elegante participação do histórico grupo Os Cariocas. Isso, por si só, já dá uma tônica ímpar a esse álbum de Moreira que passeia pelo sertão e pela cidade, pelo choro e pela percussão.

50 Carnavais (Virgin, 1997) e 500 sambas (Abril Music, 1999) são outros dois álbuns de Moraes Moreira que me chamaram a atenção. Os títulos são autoexplicativos.

Mas, claro, muita coisa acaba ficando fora nesse tipo de seleção – um tanto aleatório, reconheço.

Em 1995, por exemplo, na onda dos discos acústicos, um projeto comercial muito bem sucedido da MTV, Moraes teve seu registro antológico. Um passeio pelos grandes êxitos. Linda performance! Mas aí não vale. É covardia.

Moraes Moreira teve, ainda, dois discos gravados com Pepeu Gomes, em que celebravam uma vitoriosa parceria (Moraes e Pepeu e Moraes e Pepeu no Japão, ambos pela Warner Music, em 1990 e 1991, respectivamente).

Outra incursão discográfica de Moraes Moreira foi no álbum Nossa parceria – Moraes Moreira e Davi Moraes, um disco de 2015, editado pela Deckdisc.

Não nos esqueçamos de que Moraes Moreira deu voz e letra às músicas carnavalescas de trio, mais especialmente no Trio Elétrico de Dodô e Osmar, no qual chegou a ser o vocalista principal, tendo ativamente participado de alguns de seus LPs É a massa (pela Continental, em 1976), Ligação (Continental, 1978) e Viva Dodô e Osmar (Continental, 1980). Atuou como vocalista nesses trabalhos de muita frevo e alegria.

Moraes Moreira participou, só para não deixar de fora um registro relevante, do decantado Festival de Jazz de Montreux, e dividiu o palco com Toquinho e Elba Ramalho, evento que acabou consignado no LP Brazil night – Ao vivo em Montreux, prensado e distribuído pela gravadora Ariola, em 1981. Moraes estava no auge.

(…)

O baiano de Itauçu faleceu aos 72 anos – em 8 de julho completaria 73.

Foi um letrista mediano, especialmente se comparado com os muito bem selecionados parceiros, como Luiz Galvão, Fausto Nilo, José Carlos Capinan, Abel Silva, Paulo Leminski e Antônio Risério, apenas para ficar nos mais frequentes.  

Mas se contarmos os parceiros bissextos, inclusive os de música e não de letra (os mais constantes deles são Armandinho, coautor da deslumbrante “Chame gente”, e Pepeu Gomes, coautor, junto Fausto Nilo, de “Eu também quero beijar”), passam das duas dezenas os confrades de composição que compartilharam a obra de Moraes Moreira.

Foi o caso de Belchior, com quem Moraes compôs “Os derradeiros moicanos”, registrada apenas pelo cearense, em seu disco Melodrama (Polygram – hoje, Universal Music -, 1987), cujos versos ornados pelos batuques moreiristas enfatizam que “nós somos uns pobres diabos sulamericanos, os derradeiros moicanos”.

Uma última memória.

Em 1º de agosto de 2019, assisti, no Cineteatro São Luiz, localizado na praça mais emblemática de Fortaleza, ao show Corações democratas, no melhor estilo voz e violão, em que os parceiros de mais de 40 anos de composição, Fausto Nilo e Moraes Moreira, dividiram com uma plateia que lotava as belas dependências do equipamento cultural boa parte de sua deliciosa obra.  Obra com exemplares do quilate de “Pão e poesia”, “De noite e de dia”, “Meninas do Brasil”, “Bloco do prazer”, “Santa fé” – tema de abertura da novela global Roque Santeiro – etc. etc.

Uma apresentação memorável. O caminho da sabedoria é o da simplicidade, ensinaram sem verberar. 

Não tem como esquecer a simbiose entre letra e música, entre o violão de Moreira e o gestual nobre e discreto de Nilo, as falas compartilhadas entre Moraes e Fausto. Tocavam por música, as letras entrelaçadas às melodias, ambas no mesmo ritmo, buscando um mesmo compasso. Diante deles, uma plateia impávida, mas contrita, embevecida. Nostálgica, mas contente e, no limite temporal, feliz. 

Um derradeiro registro.

Moraes Moreira já não era o cantor das multidões de outrora, embora, quando convocado por elas e para elas, principalmente em carnavais, as encarasse com a desenvoltura dos grandes mestres, as conduzisse com a certeza dos grandes líderes, com serenidade e garra, mesmo, a esta altura, “levando o barco devagar”.

Rompeu com certa Bahia e adotou Pernambuco. Foi pernambucanamente acolhido e amado. Voltou à Bahia certa, mas Pernambuco ficou impregnado em Moraes e de Moraes, que virou até grito de guerra da apaixonada torcida organizada do Sport Clube do Recife que passou a entoar sua música “Caminhão da Alegria” antes das partidas do seu time do coração.  Moraes que saudou a divisa dos dois estados com o conterrâneo adotivo Geraldo Azevedo, em “Petrolina e Juazeiro”, tornou-se um binatural. 

Antes de morrer, Moraes fez publicar em uma de suas redes sociais um cordel sobre a quarentena, que ganhou imensa repercussão post mortem.

Mas eu prefiro ficar com uma de suas mensagens mais diretas sobre o tema de que mais ele se ocupou em vida, ao menos na vida musicalmente conhecida: o amor (como semente), a alegria (como veículo), a felicidade (como fim).

Com a palavra Moraes Moreira, em trecho de “A origem da felicidade”: 

“A alegria é o alimento da alma

Alegria é nossa grande inspiração

Alegria recompensa os sacrifícios

Alegria, soberana decisão

(…)

Alegria é a origem da felicidade.”

Sabe, Moraes, o aperto no meu peito traduz alguma irresignação, que me aponta uma única saída para aceitação relativamente resignada da morte – da morte de gente como você, que, pelo que me contaram, nem chegou a acordar para anunciar a partida definitiva.

Preciso, urgentemente, ouvir e reouvir sua vasta produção. Não a do ocupante da cadeira n. 38 da Academia Brasileira da Literatura de cordel, cujos textos, para ser sincera, desconheço. Mas a do cantor e compositor que jogou nas onze sem perder a ternura e o brio.

Começarei pelo choque chamado “Novos Baianos”. “É ferro na boneca!” Curtirei a folclórica “Besta é tu”, sua, do Pepeu e do Galvão – resposta, segundo reza a lenda, que vocês deram a Flávio Cavalcanti, um reacionário apresentador da TV Tupy, muito popular no auge do período de exceção, que chamou um disco de vocês, justo o primeiro, e a sua música de “besteira”.

Continuarei por sua produção individual (como cantor) e ouvirei “Alto falante”, que você fez com o Fausto. Não esquecerei um só “Pedaço de canção”, também sua e do Fausto. Você me permite ouvi-la na voz da Amelinha? Ficou muito legal. Eu era pequena ainda, mas adorei a voz da “Flor da paisagem” redesenhando cada partitura.

Ouvirei seus frevos e forrós, caminharei pelas canções e serestas, atentarei para os choros e os sambas, bailarei ao som de seus boleros que flertam com o brega, como “Sintonia” (sua, do Fred Góes e do Zeca Barreto) e que eu adoro. Ouvirei “Felicidade no ar”, que você e o Galvão fizeram – sempre o Galvão; vira-e-mexe, o Galvão, né, Moraes?

Soube aliás, que o Galvão não tá nada bem. 

Moraes, por que parou? Parou por quê?

 

 

Um comentário

  1. Madalena Bonfim disse:

    Que lindo Ana Paula 💜 tô aqui já chorando, tô tão emotiva esses dias…. bjs e parabéns por sua escrita maravilhosa.
    Vc podia escrever um livro, pense nisso… 😘

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