Não ouso definir Hilda. Sua obra ímpar, inconfundível e fervorosamente intensa lhe conferiu um significativo lugar no hall dos maiores escritores da literatura brasileira. Madura poeticamente, Hilda não tinha pudor ao versar sobre temas como erotismo, morte e Deus. Ela recusava o reducionismo ao colocar uma lupa em conceitos lidos de forma simplista e oferecia profundidade.
Suas linhas carregam, além de profundidade, coragem, lucidez, originalidade, paixão e compromisso em apresentar sempre diversas nuances dos conteúdos que se propõe a explorar. Hilda se debruçou na investigação da alma dos mistérios e absurdos que circundam o humano, o divino e o obsceno.
Há exatos 17 anos, Hilda Hilst abandonava o exercício da escrita para entregar-se à prática da imortalidade. Morreu aos 73 anos, em decorrência da falência múltipla de órgãos e sistemas, nos deixando mais de 40 livros publicados entre 1950 e 2000.
O Mural selecionou quatro poemas que representam bem o caráter da lírica hilstiana. Confira a seguir.
- DESEJO
Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.
2. XXXII
Por que me fiz poeta?
Porque tu, morte, minha irmã,
No instante, no centro
De tudo o que vejo.
No mais que perfeito
No veio, no gozo
Colada entre eu e o outro.
No fosso
No nó de um íntimo laço
No hausto
No fogo, na minha hora fria.
Me fiz poeta
Porque à minha volta
Na humana ideia de um deus que não conheço
A ti, morte, minha irmã,
Te vejo.
3. AMAVISSE
Como se perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se fosse tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.
4. DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.