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AGORA EU DANÇO

 

 

 

Eu não dançava. Até os 23 eu não dançava.

Pra falar a verdade eu lembro pontualmente as vezes que dancei durante esse tempo – na época do É o Tchan foi meu auge de bailarina, eu tinha certeza que ia ser a próxima Carla Perez, mas depois disso só quadrilha na escola de vez em quando, e em 2009, quando tocava Wave na abertura da novela do Manoel Carlos, eu criei um sambinha desengonçado e dançava sempre que Viver a Vida começava pra Tainá se divertir. Tainá é minha amiga e ela achava muito engraçado, amo quando a Tainá ri de se acabar.

Fora essas ocasiões, minha vida não tinha muito espaço pra dançar, nem nas festas nem pra mim mesma. Enquanto escrevo isso, penso: essa vida era minha? Parece às vezes que falo de outra pessoa. Mas eu me entendo… Quando a gente é criança falam muita coisa que bloqueia e frustra a gente, isso não é brincadeira, às vezes falta sensibilidade e a gente cresce quebrado porque ouviu algo que nos machucou ou rotulou.

A mim, por exemplo, foi dito que eu era tímida. Um absurdo, pois eu queria que fizessem roda para me verem dançando na boquinha da garrafa. O mais absurdo é eu ter levado essa verdade sem fundamento nenhum como se fosse minha, daí em diante ficou mais difícil me soltar, me sentir segura, comecei a me comparar demais e aí já era. Desisti da minha carreira artística por ser “tímida”, até virar adulta e chegar no nível de alguém querer me tirar pra dançar e eu responder: não danço. Era verdade, não dançava nem sozinha, como ia me entregar assim?

Na minha caixa de arquivos da memória existiam umas muito marcantes, de orientalismos, universos árabes deslumbrantes e fascinantes, não sei de onde isso saiu ou se saiu das minhas singelas referências de Aladim, Tchan no Egito e O Clone. A questão é que esse universo místico árabe sempre habitou meus sonhos, e nos meus sonhos sempre tinham dançarinas do ventre, é claro. Com muitos lenços e ouros.

Em 2017 eu estava sem norte porque tinha me formado há dois anos e não conseguia ocupação. Dança do ventre era meu Top 1 de coisas que eu iria fazer um dia, quando tivesse tempo. Mas esse tempo nunca chegava porque as coisas levam o tempo que elas precisam para acontecer. Como uma lâmpada que acende nos desenhos quando alguém tem uma ideia genial, pensei: agora tenho tempo, vou fazer. Na velocidade deste pensamento, que era uma decisão gloriosa, comecei a pesquisar na internet e o primeiro anúncio que apareceu pra mim foi de uma turma inaugural na semana seguinte, numa escola no bairro vizinho, nessa época morava em Fortaleza. Achei uma coincidência bárbara.

Iniciei uma nova temporada da minha vida quando a dança entrou em cena. Só tinha aula aos sábados, mas meus sábados viraram os mais especiais, eu encontrava minhas amigas com efusividade, acordava cedo para criar um ritual, tomar um super café, pedalar, me arrumar na escola, eu me vestia como se fosse uma deusa egípcia porque era assim que eu me sentia aos sábados, era tão forte dançar com as minhas amigas, nós estávamos na nossa potência. Amarrar o lenço de moedas era como colocar uma coroa, me enfeitava toda para meu dia de rainha. Só tinha aula aos sábados, mas eu comecei a dançar na semana pra treinar o movimento novo, comecei a dançar nas festas outras músicas com os passos que eu aprendia. Sei lá se encaixava, eu não estava me encaixando, estava me libertando. Tinha uma criança dentro de mim nada tímida, muito gaiata, doida pra ralar na boquinha da garrafa de novo, a dança desamarrou essa criatura e agora ela parece um bicho solto, rebola toda hora! 2017 foi um ano bem especial porque eu me tornei uma mulher que dança.

Em 2019 eu estava com um traje pronto para fazer uma apresentação com minhas amigas de turma, mas me mudei de cidade. Morando no interior não tinha como fazer aula presencial e eu tinha muita resistência em fazer pela internet. Até que 2020 chegou mostrando a que veio e minha professora abriu uma turma online, pra mim foi um presente do universo poder continuar conectada com a dança do ventre ainda que com aulas remotas. Primeiramente não está mais aqui quem julgou EAD, sei que não são todos que podem ou se adaptam, achei que não funcionaria pra mim, mas me vi rompendo essa resistência que era por pura inflexibilidade. Por conta da nova rotina do isolamento, eu pude pausar meu trabalho e ficar mais em casa, ficando em casa eu comecei a fazer aula duas vezes na semana e a treinar mais. Quando falo treinar, me refiro à dança do ventre, que é um estudo que eu gosto de fazer.

Mas qualquer dança traz à vida esse sentimento encantatório e pulsante, qualquer movimento do corpo, em qualquer estado que ele esteja, já me dá um fogo de vida. Música eleva, dança expurga, cura, traz a gente de volta pra gente. Se eu conseguir arrastar os pés pra dançar um forrozim em algum momento do meu dia, tô feliz, tenho um dia celebrado.

Em setembro adoeci e descobri nódulos nos pulmões, não era grave, mas enquanto fazia exames e os médicos não descobriam o que era para ver qual seria o tratamento, me diziam: a única coisa que você pode fazer agora é respirar, respirar limpa os pulmões. Me recomendavam exercícios. Meu exercício preferido é a dança, e comecei a dançar com mais religiosidade porque agora a dança era o meu tratamento, meu remédio, curaria minhas mazelas físicas também.

Além do grande encontro comigo mesma e das descobertas intimistas, a dança me trouxe um grupo de mulheres que sempre me relacionei mesmo que só virtualmente. É muito incrível conhecer a história das minhas companheiras de dança, elas são mulheres comuns que nem eu, e, com exceção da nossa professora, que tem formação, a gente só dança porque a gente merece dançar. Nos apresentamos umas para as outras, vibramos as evoluções, sentimos dores que não são nossas, mas às vezes são dores comuns, que vem disso de se saber mulher. Essa troca me fortaleceu de uma forma que ainda não sei nem explicar, foi o que me salvou nestes dias pandêmicos e só agora começo a me dar conta da dimensão.

Temos um grupo e esses dias falávamos sobre a importância de agradecer e comemorar as pequenas vitórias. O ano foi tão tenso que estar respirando sem dor agora é um motivo enorme para se alegrar. Pra mim literalmente é, lembro disso e até encho o peito de ar só para soltar devagar, eu tenho um pulmão que me permite até dançar, é um privilégio.

Eu mereço dançar todos os dias e consegui fazer isso no mais esquisito dos anos, dancei todos os dias de 2020 – pras minhas amigas, pro meu público imaginário, pros meus amigos do Instagram, pros meus gatos e especialmente: pra mim, dancei de olhos fechados, dancei nua, dancei na chuva, dancei pro espelho, dancei pra me limpar; este é o meu maior presente. De mim, pra mim. Com amor e gratidão ao meu corpo.

 

 

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