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A TERRA DO SOL É NEGRA: MARACATU É A ÁFRICA NO CEARÁ

FOTO: FERNANDA SIEBRA/SECULTFOR

 

 

 

 

Há alguns meses, uma polêmica se instalou em Fortaleza graças a uma suposta pesquisa cujo resultado indicava uma forte herança vicking no DNA dos cearenses. Não vou aqui me debruçar sobre as minúcias metodológicas ou sobre a crítica aos interesses por trás da dita pesquisa, relacionados à afirmação dos desejos delirantes de uma branquitude cearense. Sobre isso já há bastante literatura disponível na internet. Recomendo particularmente os escritos de minha colega Izabel Accioly, no Site Negrê, e do professor Hilário.

O que pretendo discutir neste texto é outra coisa. Minha proposta, questionando a pesquisa mencionada acima e solapando o imaginário social em torno da afirmação falaciosa de que “não há negros no Ceará”, é reafirmar uma origem cearense marcadamente preta. Para tanto, o caminho que pretendo percorrer é justamente aquele sobre o qual fui convidado a escrever aqui: arte e cultura. Quero falar de manifestações culturais presentes no Ceará. Na realidade, a ideia é pensar um pouco sobre uma manifestação cultural específica: os maracatus.

Registrados pelo Nordeste brasileiro desde o início do século XIX, no Ceará se compreende o surgimento dos maracatus como algo datado da década de 1880. Momentos festivos, embalados por canções, danças e batuques, os maracatus são, de modo quase literal, encenações das festas de coroação dos reis e rainhas do Congo. No livro “Maracatu Az de Ouro: 70 anos de memórias, loas e batuques” (2007), o memorialista João Wanderley Roberto Militão, o Pingo de Fortaleza, escreve:

“O Maracatu é realmente uma festa. Um encontro de pessoas fantasiadas, com o rosto pintado de preto, dançando, cantando e tocando instrumentos. São figuras encarnando personagens de um único enredo: um cortejo de coroação de uma Rainha Negra, realizando um momento mágico de louvação”

Uma apresentação de maracatu é um cortejo. Um cortejo ritmado pelos batuques dos tambores e embalados pelas loas, que são as canções entoadas nos maracatus. Desse cortejo participam personagens diversos, dentre os quais se destacam as calungas, bonecas africanas que conduzem o cortejo, e o Rei e a Rainha do Congo, além de uma vasta representação da nobreza, incluindo príncipes e princesas, duques e duquesas, etc.

Um maracatu é uma representação do cortejo de coroação dos reis e rainhas do Congo. Portanto, fazem referência direta à coroação do casal real do país africano. Nas tradicionais festividades dos maracatus, há uma ritualística meticulosamente trabalhada para encenar, dos movimentos corporais à indumentária, os ares de realeza. Vale destacar, aqui, que a forma calculada e ritualística como se realizam os desfiles é ela própria um testemunho do caráter cerimonial ao qual esses desfiles fazem referência.

Nesse âmbito, estes autos de Congo são, de fato, uma dramatização de experiências históricas vividas no continente africano. Aqui, são teatralizadas, de modo a constituir uma narrativa sobre a realeza congolês. Contudo, por óbvio, essa referenciação à tradição antiga acontece intermediada por novas significações relativas à experiência vivida  solo brasileiro.

Dessa forma, caberia brincar que um maracatu é uma manifestação africana genuinamente brasileira (ou, no nosso caso, cearense). Isso porque há uma nova produção de significados, evocada pelo cotidiano vivido do lado de cá do Atlântico, que passa por uma visão ligeiramente romantizada da experiência em África, muito marcada pelo sentimento de saudosismo. Isso não quer dizer que tais manifestações ou mesmo tais percepções sobre o continente africano percam seu valor. Significa apenas que, da perspectiva dos estudos em História, há de se compreender tais ritos sob essa perspectiva de uma nova produção de sentidos.

O que antes, em solo africano, era a celebração de uma realeza verdadeira, passou a ser uma festividade que desempenha um papel fundamental na manutenção e na transmissão da memória sobre a ancestralidade do povo preto no Ceará, em sua maioria de origem banta. Ao mesmo tempo em que antes, em se tratando de uma ritualística verdadeiramente política em seu sentido institucional, poderia estar envolto em uma série de conflitos, intrigas e disputas pelo trono, passou a adotar uma discursividade mais ou menos homogênea, centrada no sentimento de celebração. Antes uma cerimônia constitutiva da vida em sociedade, passou a ser, talvez mais do que qualquer outra coisa, um espaço de resistência.

Resistência por meio da memória. Tratava-se de um povo que precisava fazer o possível para não perder sua própria capacidade tanto de olhar para o passado e poder se historicizar como  também de olhar para o futuro e poder se ver autônomo. Historicamente, no Ceará, as festas de coroação dos Reis do Congo, representaram um momento de autonomia para os negros, em que as espoliações, as repressões e o recalcamento cultural sofridos durante todo o ano pareciam ser suspensos por um dia ao ano.

No Ceará, os maracatus surgiram por volta de 1880 e 1890, e até hoje são muito fortes e presentes, constituindo uma tradicionalíssima manifestação cultural do Estado. Um fragmento do jornal O Libertador de 07/01/1889 denota uma sobreposição entre categorias como maracatu, samba, bumba-meu-boi, Congo e Reis do Congo. Essa mistura de diversos elementos marcadamente negros evidencia a presença e a força de um “substrato cultural negro” no contexto fortalezense. Cabe ainda mencionar que essas manifestações foram amplamente perseguidas no período que imediatamente sucedeu a abolição da escravidão no Ceará, após 25 de março de 1884, da mesma forma que foram duramente controladas e perseguidas manifestações marcadamente negras como o samba e a capoeira, sob o signo da “vadiagem” — o que mais uma vez testemunha a favor de uma tradição negra e africana na cultura cearense.

É muito difícil encerrar um texto sobre maracatu. O que não falta é pano para manga, fontes, livros e coisas para falar. Mas tentando concluir (achando, inclusive, que já me estendi demais — historiador realmente tem esse problema com a prolixidade), acho que o que quero dizer com tudo isso é que cultura não nasce do vazio. Cultura existe onde existe gente. Vem da bagagem (histórica, inclusive) que a experiência dos povos produz. Sintetizando o que diz o pensador marxista Raymond Williams, é a manifestação subjetiva da experiência material.

Para além de uma obviedade, a proposição vem no sentido de, mais uma vez, afirmar: ao contrário do que ainda é muito dito aos quatro cantos do estado, há sim negros no Ceará. Nós sempre estivemos aqui. E, mais uma vez contrariando uma má compreensão muito difundida, existimos aos montes. O maracatu, penso, é um forte testemunho da herança africana em solo alencarino.

Não é novidade para ninguém que há uma marca africana muito forte em praticamente qualquer elemento que se resolva reivindicar como componente do que se denominaria “cultura brasileira”. Mesmo os que ainda se recusam a conferir centralidade aos negros escravizados nos processos de gestação de algum senso de brasilidade falam de “contribuição histórica” desses mesmos escravizados.

Muitas das tradições, ritos, religiosidades e manifestações culturais desenvolvidas em solo brasileiro partem, na realidade, de cultos, reverências e memórias ancestrais próprias da costa ocidental africana. Tanto é que a historiografia mais recente tem buscado, a partir dos estudos dessas manifestações, ritos e tradições, dar conta das conexões e da relação de interdependência existente entre os dois lados do Atlântico como um elemento central na construção do Brasil.

Há negros gritando tradição em cada elemento cultural típico do Estado, a despeito do discurso que diz justamente o contrário. Diante da história e daquilo que representa um movimento tão pungente como são os maracatus, não resta dúvidas: não somente há negros no Ceará como é possível conceber o solo alencarino como um pedacinho de África.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel (BPGMP), Núcleo de Microfilmagem, Jornal O Libertador, Fortaleza, 07/01/1889.

BRIGIDO, João. O Ceará (Lado comico) – Ad ridendum. Algumas chronicas e episódios. Fortaleza: Louis C. Cholowiecki, 1899.

MILITÃO, João Wanderley Roberto (Pingo de Fortaleza). Maracatu Az de Ouro: 70 anos de memórias, loas e batuques. Fortaleza: OMMI : Solar, 2007.

RIBARD, Franck. A Rainha de Congo: narrativas, performances e circularidade cultural dos negros da cidade de Fortaleza, Ceará, Brasil (1870 – 1889) . In: BRANDÃO, Gilda Vilela; MARTINS, Ana Claudia Aymoré; WOJSKI, Zygmunt. (Org.). Corpo, literatura e cultura. Espaços Latino-americanos da escravidão . Maceió: EDUFAL, 2011, p. 117-132.

SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Tradução André Glaser. São Paulo: Ed. Unesp., 2011. 420 p.

 

Um comentário

  1. […] maneira mais meticulosa em um texto que fui convidado a publicar no Mural da Ana Paula, intitulado “A Terra do Sol é negra: maracatu é a África no Ceará”. Enquanto pesquisava para escrever esse texto, encontrei uma informação muito curiosa. Os […]

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