Estava vendo um dos novecentos e sessenta e nove cursos online que comecei a fazer durante a pandemia, quando a moça do vídeo passou um exercício que consistia em se lembrar de uma ocasião em que fizemos ou sentimos algo pela primeira vez. Não consegui continuar no curso, mas passei o resto do meu tempo refletindo sobre isso, o dia inteiro eu mexia nas gavetas das minhas recordações e me surpreendi porque são tantas primeiras vezes nessa vida! Fiquei assim, como se estivesse folheando um álbum de fotografias mentais, até que uma me pegou de jeito. E essa estava bem guardadinha, quase empoeirando.
Tinha uns sete, oito, ou nove anos… A idade não lembro bem, mas lembro que o meu sonho era dar a volta no quarteirão sozinha, sem a supervisão de um adulto. Eu morava no interior e tinha amigas na minha rua, mas as crianças do bairro se concentravam na rua ao lado, dobrando a esquina, era pivete correndo e gritando pra todo lado, eu ficava ouvindo a algazarra toda querendo participar, mas não tinha autorização pra ir.
Até que um dia, na raríssima ausência de minha mãe, o adulto que ficou tomando conta de mim me liberou pra ir brincar nessa rua, eu finalmente virei a esquina sem a companhia ou vigilância de nenhum adulto. Eu estava extasiada, eu podia correr, gritar, falar o que eu quisesse sem me conter e sem repreensão nenhuma. Eu era simplesmente eu. Desse dia o que eu mais lembro é de estar numa calçada pulando amarelinha com as outras crianças, nessa hora minha franja estava colada na testa com um suor gelado escorrendo pelo rosto.
Meu êxtase durou até a hora de dormir. Eu era Clarice com As Reinações de Narizinho nas mãos. Quando minha mãe soube do que aconteceu não gostou e falou coisas que não conseguia ouvir porque eu estava completamente inebriada. Já não tinha jeito, eu já tinha visto como era a liberdade. Essa é a história da primeira vez que senti liberdade. Nunca mais fui a mesma porque algo muito grande se revelou como se a cortina despencasse, era arrebatadora a impressão de que estar viva fazia muito sentido.
Precisei sair da cidade para fazer faculdade e fiquei oito anos em Fortaleza, mas faz um ano que voltei a morar aqui em Ipu, minha cidade natal. Nesses últimos anos fiz oito mudanças de casa, entre quitinetes e apartamentos, dividi moradia com tia, prima, boy, casal, gato, enfim… Aprecio mudanças, inclusive geográficas! De repente me encontro habitando agora uma casinha muito simpática com quintal, a primeira vez que entrei aqui tive uma vontade de ficar instantânea e mais: de enraizar. De repente, depois de assoprar o pozinho que encobria aquela lembrança de infância que me capturou, me dei conta de que a calçada que joguei amarelinha aquele dia era essa, a minha, que moro agora. Acredita? Posso ver daqui de onde estou, foi logo ali na frente que eu senti a sensação inédita de ser espontaneamente eu.
Depois desse reencontro com a minha criança suada estou até pensando em desenhar uma amarelinha aqui na frente e chamá-la pra gente pular juntas até tarde da noite, só terminar com as faces coradas e os pés sujos.