O cinema documental de Coutinho é reconhecido pela escuta sensível da alteridade. Coutinho não permite que as histórias e relatos contados pelos seus personagens sejam repetidos. Quando uma pessoa repete algo, o seu discurso já não é o mesmo, ela estará submetida a outra motivação e situação. É no ato dos personagens de contar pela primeira vez sua história que sua fala se apresenta mais real. É aí que está a riqueza dos documentários de Coutinho.
Quando pedimos para que alguém repita sua fala, ela já não vai estar preocupada em contar naturalmente o relato. Ela vai se preocupar em contar fielmente como contou pela primeira vez. Isso faz com que o impacto e a genuidade do relatado se percam. Será uma cópia mal feita, sem alma. Para obter esse efeito, na produção dos documentários de Coutinho, a equipe de produção vai ao local antecipadamente para colher e selecionar as melhores possíveis entrevistas.
Ao admitirmos que existe uma verdade que possa ser filmada, estamos também afirmando que o documentário, na melhor das hipóteses, revela a verdade de uma filmagem. Verdade essa que Coutinho nos revela; e que observamos nas raízes do Cinema Verdade de Jean Rouch: a realidade que é criada no contato e no momento da troca dos diálogos, assim como na inevitável interferência do cineasta. A influência do documentarista francês está presente nos trabalhos de Coutinho quando percebemos a potência dos seus documentários. Ao nos fazer pensar sobre a história do país, refletir sobre a cultura brasileira, encontrar nas memórias reais das narrativas dos personagens a identificação e constituição de nós mesmos, é quando nos encontramos com a força de estar diante da verdade da filmagem.
Segundo Coutinho (1997), “a verdade de filmagem significa revelar em que situação, em que momento ela se dá e todo o aleatório que pode acontecer nela. (…) É uma contingência que revela muito mais a verdade da filmagem que a filmagem da verdade.”
Todo o “aleatório que pode acontecer nela” é exatamente gravar sob o risco do real. O filme não consiste em ensaiar e mostrar o que seria a realidade. Muito pelo contrário, a verdade contida na filmagem em si se revela no telefone que possa tocar, na interferência de um comentário externo à cena enquadrada, no cachorro que começa a latir do lado de fora, etc. Um documentário, que tenta administrar todos os seus componentes visíveis com o intuito de ser “o mais real possível”, está fugindo do real.
No documentário Boca de Lixo (1992), Coutinho entrevista catadores vivendo em lixões, falando sobre sua vida, indo e voltando em comentários e opiniões ambíguos, essa inconstância de ser, essa imagem se aproxima muito mais da realidade do que uma tentativa específica de demonstrar realidade.
A contingência da vida é o indício do real. A solidão e o sofrimento de uma mãe que fala dos filhos que perdeu, enquanto dá uma pausa em sua fala e olha fixamente para o chão sem querer demonstrar sua dor, mostra muito mais o real da vida do que a exibição de fotos de uma criança que já não mais existe acompanhadas de uma música melancólica. O desconcerto nas imagens abrem muito mais possibilidades do espectador de se ver, o gaguejar, o silêncio da fala do outro, ali sou eu também.
A escolha de Coutinho por pessoas para se conversar, não se baseia na opção de alguém que tenha mais probabilidade de falar sobre o que se quer gravar. É precisamente mais interessante o contrário. A situação de dialogar com alguém desconhecido, a riqueza desse diálogo está nas incertezas de suas falas e suas opiniões. O risco das conversas com desconhecidos, o inusitado de novas histórias. As divergências existentes entre as pessoas e o imprevisto do diálogo inscrevem a riqueza do documentário.
Porém, mesmo trabalhando dessa forma, o documentarista tem um mínimo de controle em relação ao direcionamento da conversa. Não é induzir uma determinada resposta a partir de uma pergunta específica, mas no saber como motivar um personagem a explorar mais sua narrativa. Apesar de ser mínima essa indução, ela ainda sofre interferência do risco do real. Afinal, o fluxo da história, os sentimentos podem suscitar inúmeros efeitos nas conversas.
Um documentarista sempre estará ameaçado pelo real, a cada entrevista que acontece múltiplas resoluções podem surgir, juntamente com seus erros e acertos. Não importa o quanto tentássemos gerar uma lista de regras para atingir determinado resultado, o real é incontrolável (LINS, 2004, p. 86).
Clara Gomes e Daniel Sobral
Especial para o Mural
*Fragmentos de textos retirados do artigo “O documentário de Eduardo Coutinho sob o risco do real”, de Clara Gomes e Daniel Sobral, orientado pela Profa. Dra. Eliane Diógenes. O trabalho, parte da pesquisa “Narrativas Biográficas e Autobiográficas no Documentário” do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor), foi apresentado no XXV Encontro de Iniciação à Pesquisa da Universidade de Fortaleza, em outubro de 2019.
Foto de capa: Daryan Dornelles
Referências
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário (2004). Tradução de Augustin de Tugny, Oswaldo Teixeira e Ruben Caixeta. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2008.
COUTINHO, Eduardo. O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade. Projeto História, revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, PUC, São Paulo. v. 15. abr. 1997.
DIÓGENES, Eliane. A originalidade de Jean Rouch no cinema documentário: a construção do outro através das narrativas autobiográficas. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE COMUNICAÇÃO E CULTURA, n. 1, 2015, São Caetano do Sul, SP. Anais do I Simpósio Internacional de Comunicação e Cultura. São Paulo: USCS/UNIP/METODISTA/COLIMA, 2015b. p. 1421 – 1436.
DIÓGENES, Eliane V. Narrativas (auto) biográficas no documentário brasileiro: do privado ao público (2017). Tese (Doutorado de Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.
LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.